30.5.04

BARATEZA

Ou como a China sempre produziu produtos mais baratos. Ou ainda de como foram as porcelanas chineses introduzidas nas cortes europeias .



"Era manjar de alma o que o Arcebispo [D. Frei Bartolomeu dos Mártires OP] tinha nestas práticas, muito mais saboroso pera êle que todos os que vinham à mesa; e, desejando mostrar-se grato a tantos favores de Sua Santidade [Papa Pio IV], pareceu-lhe que tinha bastante matéria no grande número de vasos de prata que ali via, considerando que havia prato que podia ser casamento de uma orfã e outro que podia bem vestir muitos pobres e notando com mágoa que só o ouro dos dourados, que já estava perdido, pudera matar a fome a muitos miseráveis a quem tomava a noite sem ceia e às vezes sem jantar.
Era esta sua ordinária teima e invectiva contra os bispos que se serviam com prata; e não admitia a desculpa que davam que era serviço que durava tôda a vida e gasto feito por uma vez, e na hora da morte ficava pera satisfação de criados e dividias miúdas que sempre havia nas casas grandes. E afirmava que não podia haver razão que abonasse tamanha sem justiça, como era em terras cheias de pobreza e de necessidades de próximos urgentíssimas resplandecerem os aparadores dos Prelados com aquela riqueza ociosa. Sabia êle como já o Pontifice tinha noticia desta sua paixão, fêz conta que pequeno remoque bastaria pera quem estava advirtido e tinha o engenho esperto; e, tomando ocasião de um fermoso vaso dourado que veio à mesa:
- Temos - disse - em Portugal um género de baixela que, com ser barro, se aventeja tanto à prata em graça e limpeza que aconselhara eu a todos os Principes (se um pobre frade pode fiar de si dar conselhos) que não usaram outro serviço e desterraram de suas mesas a prata. Chamamos-lhe em Portugal procelanas, vêm da India, fazem-se na China; é o barro tão fino e transparente que as brancas deixam atrás os cristais e alabastros; e as que são variadas de azul enleiam os olhos representado uma composição de alabastros e safiras. O que têm de quebradiço recompensam com a barateza; podem-se estimar dos maiores Principes por delícia e curiosidade e por tal se têm em Portugal.
Não passou por alto ao Papa o tiro do Arcebispo e bem notou onde apontava com a tenção; e, dissimulando, disse-lhe que tevesse lembrança, quando se visse em Portugal, de dizer ao Cardial Ifante [D. Henrique] seu amigo lhe mandasse destas procelanas, que, como as tevesse, daria de mão à prata. Contou o Arcebispo esta história ao embaixador, que teve cuidado de avisar o Cardial; e, dentro de poucos dias, estavam em Roma grande número de procelanas de tôda sorte com que Sua Santidade mostrou muito gôsto e partiu com Cardiais e outras pessoas e ficou com serviço bastante para muitos dias."

(Fr. Luis de Souza, "Vida do Arcebispo", Cap. XXIV, Viana do Castelo, 1619)