Já aqui, infra, os meus colegas Blasfemos CL e Gabriel Silva, abordaram, em excelentes postas, a questão da actual revisão constitucional. Há, no entanto, algumas notas que me parecem dignas de realce, a propósito de tal encapotada mudança do nosso texto constitucional.
Em primeiro lugar, trata-se, sobretudo, de uma mudança de cosmética de redacção. Esta revisão (como, de resto, a antecedente) é motivada principalmente pela questão europeia e, como tal, outras matérias serviram, na economia do texto proposto, principalmente para a) enquadrar o que é o leit-motiv da presente revisão, b) actualizar/refrescar a terminologia constitucional, quiçá, aclarando-a – ou, pelo menos, usando a clareza/concretização actualista de certas expressões e princípios positivados, como objectivo de parte significativa das alterações introduzidas.
Isto, de per se, não é criticável; não quer dizer que seja útil ou mesmo, tão somente, muito necessário. Talvez fosse mesmo desnecessário e, como tal, corre o risco de ser irrelevante...rectius, quase irrelevante, não fora o “efeito camuflagem” (uma espécie de ruído de fundo que até nos pode, eventualmente, distrair) que tem sobre aquilo que agora se apresenta como decisivo (as alterações introduzidas nos artigos 7º e, sobretudo, 8º, da Constituição da República Portuguesa)!
Assim, será o acaso, por exemplo, da garantia da alegada extensão do princípio da igualdade, à opção pela orientação sexual. O artigo 13º e o princípio da igualdade nele consagrado, já proporcionavam tal garantia (não era necessário dizê-lo “preto no branco”), a interpretação e a prática jurídico-constitucional já haviam institucionalizado tal protecção – donde resulta que este acrescento é, efectivamente, irrelevante, por repetitivo. Claro que poder-se-á sempre dizer que uma espécie de concretização/regulamentação constitucional, para tal situação, clarifica as coisas (entenda-se, a ratio juris vigente); porém, se daí poderão advir vantagens (até numa perspectiva pedagógica), talvez seja maior o inconveniente de se transformar a Constituição numa espécie de catálogo de exemplificações, de regulamentação de casos concretos ou de princípios naturais (até já positivados). Ora, isto dificilmente se compagina com a boa redacção constitucional; este caso poderá ser uma porta aberta, no futuro, para um desbobinar de múltiplas concretizações do princípio geral da igualdade (e não só...) a muitas outras hipóteses concretas, também elas dignas de igual garantia (a raça, a nacionalidade, o sexo, a idade, a religião, as opções alimentares, a pertença clubista, a localização geográfica de residência, etc., etc. e tutti quanti!). Dito de outro modo, este estilo de redacção constitucional agora (mais uma vez) seguido, poderá ser “politicamente correcto”, até se compreende à luz dos cânones desse mesmo “politicamente correcto”, porém, poderá vulgarizar a Constituição, retirando-lhe dignidade (leia-se descaracterizar a Constituição, aproximando-a de uma espécie de Lei ordinária ou, quando muito “lei de valor reforçado”).
Passemos àquilo que realmente importa: a questão europeia; os artigos 7º e, sobretudo, 8º!
Ora, aqui, o que realmente muda é a orientação explícita no sentido da subordinação hierárquica das normas internas, de direito português, aos princípios e normas comunitárias – inclusivamente, em abstracto e formalmente, das próprias normas constitucionais portuguesas. Que o princípio do primado, para muitos, já o impunha, não é novidade, porém, a margem de casuísmo que, à falta de consagração expressa, permitia uma permanente e enriquecedora discussão doutrinária é, agora e sob este ponto de vista, retirada! Em abstracto, aceitou-se e consagrou-se abertamente a subordinação de todo o direito interno (em princípio, Constituição incluída) ao Direito Comunitário.
Este é, efectivamente, o ponto definitivamente inovador, na presente revisão.
Não é a aplicação directa das normas comunitárias. Há cerca de (quase) vinte anos que ela existe (Regulamentos comunitários e, se quisermos considera-las como "fontes" de normas jurídicas, idem idem com as Decisões; o mesmo também se passa com as normas das Directivas, em certas circunstâncias – em especial, por efeito do princípio do efeito directo vertical). Mais, grande parte daquilo que são, hoje em dia, direitos adquiridos, institucionalizados e, naturalmente, invocados pelos cidadãos, resultam desse movimento integrador e de “aplicação directa” do direito comunitário – v.g., direito dos consumidores, direito do ambiente, etc., etc.).
No entanto, há aqui, desde logo, uma leitura: os partidos dominantes no nosso mercado político (PSD – PS; o CDS-PP é aqui, de certa forma e em função dos seus actuais mimetismos com o PSD, despiciendo) pretendem conformar já a ordem constitucional interna àquilo que é o actual projecto (problemático) de “Constituição Europeia”, antecipando-se à própria aprovação (em Conferência Inter-Governamental) desta! Dito de outro modo, há já um pacto de regime, no sentido de (com mais ou menos alterações) Portugal aprovar – pelos vistos, já antecipadamente e avant le temps – o ainda polémico projecto de “Constituição” Europeia. Pelo que, relativamente a um desejável e oportuno referendo interno sobre esta questão (que, até mesmo para reforçar a legitimidade da opção europeia portuguesa, seria, no mínimo, útil...para não dizer mesmo, sob o ponto de vista da democracia material, fundamental!), estamos conversados. Dificilmente, PS e PSD deixarão que se realize!
Já agora, apesar de tudo e sob o ponto de vista material, com todos os (possíveis) defeitos que a futura “Constituição” Europeia tenha (seja lá qual for o seu conteúdo concreto) – se e quando ela for aprovada, terá sido 100 vezes mais debatida, participada e acompanhada e o seu processo terá sido 1000 vezes mais transparente (apesar de tudo) e 10.000 vezes menos subreptício, do que esta (como, de resto, todas as outras) encapotada revisão constitucional portuguesa!!