2.9.04

Mercantilizar a Educação

Cada vez que em Portugal se discute o ensino, a educação, as propinas, há questões de base em que ninguém ousa tocar, dado que fazem parte dos sacrossantos direitos adquiridos que se pressupõem intocáveis. Tais questões, têm fundamentalmente a ver com a gratuitidade do ensino e com a definição do papel do Estado. Independentemente da filosofia que se escolhesse, sendo lícito equacionar cenários em toda a amplitude, da gratuitidade total do ensino à assumpção dos respectivos custos integralmente pelos utilizadores, estou convicto que uma melhoria na qualidade do ensino terá de passar por uma reformulação completa do papel do Estado.

No sistema actual, o Estado desempenha em simultâneo um papel regulador, financiador e prestador de serviço, sendo responsável por um quase monopólio da oferta. Em qualquer mercado ? e o ensino situa-se no dos bens sociais que, por muito que custe a muita gente, pode e deve ser mercantilizado ? sempre que um dos agentes beneficia de posição dominante, o serviço prestado é caro e de má qualidade. Em Portugal, o Estado tem a parte de leão na oferta dos serviços de ensino e é nítida a sua degradação, com custos sempre crescentes, pagos uma ínfima parte via propinas e o resto via impostos.

É hoje relativamente consensual, mesmo ao nível das concepções políticas liberais, que o Estado deve ter um papel interveniente na educação, quase unanimemente considerada um direito universal e que deve ser custeado por toda a sociedade. Subjaz a isto o entendimento de que a competitividade e a riqueza de um país decorrem cada vez mais da qualificação dos seus recursos humanos (a que podemos chamar software ou conhecimento) e cada vez menos da detenção de activos físicos ou recursos naturais (o hardware).

Ou seja, a discussão não se coloca na intervenção do Estado em si, mas no tipo de intervenção, no modus faciendi. Se analisarmos as referidas três vertentes em que se consubstancia a intervenção do Estado na educação, conclui-se facilmente que é na prestação do serviço que se detectam mais falhas. E é assim porque o Estado não foi nem nunca será bom gestor, porque decide com base em concepções iluministas dos burocratas e não em resposta a necessidades do mercado, porque toda a acção é desenvolvida com vista a cumprir regras geralmente inadaptadas à realidade e nunca com vista a satisfazer os Clientes. A oferta de serviços (leia-se, cursos) é estabelecida por planificadores centrais ou por corporações de interesses e jamais pela procura que se manifesta na sociedade. E assim nos debatemos hoje com falta de médicos, mas temos em contrapartida uma oferta diversificadíssima de cursos, a maioria dos quais garante aos licenciados o volante de um táxi, uma broca para as obras ou um avental para servir à mesa.

Assim sendo, a grande reforma passaria pela redução do papel do Estado às vertentes reguladora e financiadora. Nesta última, haveria que alterar a entidade financiada directamente, que deveria ser o estudante e jamais a escola. O instrumento para tal já é conhecido e testado em vários países com excelentes resultados: o cheque-educação, a que todas as famílias com filhos em idade escolar teriam direito, com atribuições anuais condicionadas à existência de aproveitamento escolar. O valor do cheque equivaleria ao custo médio da propina para um determinado curso, cabendo às famílias a escolha da escola, suportando diferenciais de preços, caso existissem. Ou seja, a propina ? que deveria ser o único meio de financiamento das escolas, para além de patrocínios que estas conseguissem obter na comunidade ? incorporaria não só o custo do serviço, mas também um prémio que tenderia a reflectir o preço da qualidade do ensino ministrado. A possibilidade de escolha e a qualidade ou falta dela que se revelariam rapidamente através da diferenciação de preços, indicariam desde logo as melhores e as piores escolas, sendo que estas teriam inevitavelmente o destino de qualquer organização que produza sem qualidade em mercado aberto: a falência e o encerramento. Um critério de qualidade que rapidamente se instituiria, seria a capacidade das escolas em "colocar" os seus licenciados no mercado de trabalho.

E a gratuitidade do ensino? Em que medida e em que amplitude deverá este ser gratuito para o utilizador? A questão aqui é bem menos pacífica e vai desde as posições socializantes que defendem a gratuitidade da creche ao superior, às perspectivas ditas ultra-liberais que defendem o pagamento pelo utilizador de todo e qualquer tipo de ensino. Uma concepção intermédia, mas que não deixaria de ser considerada liberal face ao pensamento dominante, consistiria no financiamento pelo Estado, em moldes semelhantes aos acima referidos, apenas do ensino básico e secundário. O estudante do ensino superior, deveria financiar-se com meios próprios ou recorrendo a linhas de crédito a médio prazo que reembolsaria quando se integrasse no mercado de trabalho. O Estado aqui interviria eventualmente como avalista dos estudantes de parcos recursos e capacidades demonstradas.

Isto leva-nos de volta à natureza estratégica do ensino. É ou não vital e claramente benéfico para um País ter recursos com formação superior? Sem dúvida! Mas o benefício imediato vai para o licenciado que, por via de uma formação superior, consegue uma mais fácil integração no mercado de trabalho e em funções qualificadas que, por norma, lhe permitirão auferir rendimentos superiores. Ou seja, a formação superior deve ser considerada como um investimento que a pessoa faz em si própria. E se é ela que vai beneficiar dos proveitos desse investimento, é justo que suporte o respectivo custo e não o contribuinte que jamais teve oportunidade para estudar. Mas, existindo claros benefícios para o País, não se justificará que a comunidade contribua, pelo menos parcialmente, nos custos da formação? É discutível. Primeiro, porque nada garante que o recém licenciado permaneça no País. Nada o impede, se tal conseguir e lhe for mais favorável, de pôr os seus conhecimentos ao serviço de uma organização estrangeira, não beneficiando em nada o País que lhe tivesse garantido e financiado a formação. Depois, há questões de equidade. De cada vez que o Engº Belmiro de Azevedo investe milhões para abrir um novo hiper-mercado, está a criar novos empregos, riqueza e bem estar no consumidor. E, obviamente, a tornar o seu bolso ainda mais pesado. Seria concebível que o Estado lhe financiasse o investimento tendo em atenção os benefícios esperados para o País? Finalmente, há questões de moralidade e de racionalidade: sempre que um investimento é subsidiado, no todo ou em parte, o resultado final salda-se geralmente pela ostentação e pelo desperdício. Temos aliás em Portugal péssimos exemplos com a (má) utilização dos fundos comunitários...