7.9.04

Renda social, penúria habitacional

Um dos fenómenos mais perversos do nosso tempo, pelas distorsões que provoca não só na esfera económica, mas também na social, decorre dos privilégios outorgados a determinadas faixas da população para adquirirem bens ou serviços abaixo do seu real valor, frequentemente abaixo mesmo do custo de produção. Tal acontece quando há lugar ao tabelamento de preços, quase sempre por imposição administrativa e justificado por objectivos supostamente muito nobres.

Sempre que há imposição de preços máximos e se faz recair esse ónus integralmente sobre o produtor, o resultado a prazo será a escassez e o racionamento de tal produto em mercado aberto e, no imediato, o florescimento do mercado negro com preços especulativos. Evita-se a escassez e o mercado negro pondo o Estado a subsidiar os produtores pelo diferencial entre os preços tabelados (máximos) e os preços de mercado. Isto acontece muitas vezes nos chamados bens básicos ou de primeira necessidade, mas daqui resultam dois efeitos negativos: por um lado, e uma vez que o subsídio ao produtor é cego, ele irá também beneficiar o consumidor de elevados rendimentos que não necessita de ser financiado; por outro lado, como os subsídios atribuídos pelo Estado provêm de impostos pagos por todos os contribuintes, temos o efeito perverso de estarem todos a financiar bens que são consumidos por alguns. Teríamos, por hipótese académica, os cidadãos abstémios a financiarem os consumidores de cerveja se esta tivesse o preço subsidiado. Refira-se, a título de curiosidade que, embora nunca tivesse sido subsidiada, a cerveja teve os preços controlados em Portugal até meados da década de 80, com os concomitantes períodos de escassez, geralmente durante os meses de Verão.

Um mercado onde é praticamente consensual que exista tabelamento de preços é o do arrendamento. A aceitação deste facto por parte dos cidadãos é muito do foro emocional e acontece intuitivamente. Ninguém hoje põe em causa o direito de qualquer cidadão a uma habitação condigna, mesmo que não possua recursos para pagá-la. Como ninguém põe em causa o direito à saúde e à educação. A aceitação a que tais direitos e muitos outros sejam consagrados, acontece intuitivamente. Os direitos estão justificados à partida, é uma questão de bom senso, de justiça dita social. Existindo uma entidade impessoal chamada Estado que se apreste a garantir aqueles direitos, tirando-nos o fardo de termos de nos preocupar permanentemente com os pobrezinhos e os carenciados, tanto melhor, é uma forma expedita de nos aliviar a consciência. A conjugação destes factores levaram à criação, validada pelos cidadãos, de estruturas gigantescas do Estado para prestar e garantir todo um conjunto de bens e serviços ditos sociais. Essas estruturas são hoje ingeríveis e os serviços que prestam são geralmente de qualidade deficiente. As queixas dos cidadãos sucedem-se quanto à má qualidade dos serviços de saúde, de educação, de habitação social. Mas continuam a aceitar que a solução passe por maiores dotações orçamentais, as quais redundam quase sempre num aumento do gigantismo e da ineficiência das estruturas e no fortalecimento das corporações que as administram.

O tabelamento das rendas é algo que vem do salazarismo profundo, numa lei que remonta a 1945 e que até agora ninguém ousou revogar. Uma ou outra alteração feita com pinças, não mudou estruturalmente nada. O ónus disto recaiu inteiramente sobre os senhorios que viram os seus rendimentos reais decaírem, sendo quase nulos ao fim de seis décadas. Muito antes disso, acabara em Portugal o mercado de arrendamento.

Assar Lindbeck, economista e antigo presidente do Banco Central sueco, considerou o tabelamento das rendas de habitação o meio mais eficaz, a seguir a um bombardeamento, para destruir uma cidade. A cidade do Porto, bem como outras em que os centros históricos tenham elevada densidade populacional, são exemplos claros da verificação daquela tese.

É mais ou menos este o ciclo vicioso da pobreza e que se verificou em Portugal desde a década de 50: rendas artificialmente baixas, provocam uma ocupação irracional do espaço e inevitáveis sobrelotações; para além de baixas, o seu desfazamento crescente face aos valores do mercado, leva à impossibilidade de manutenção dos prédios, com a consequente degradação do parque habitacional; a procura de habitação aumenta pela criação de novas famílias, mas a oferta para arrendamento é cada vez mais exígua; intervenção do Estado no mercado da habitação, através da criação de um novo conceito, o de bairros sociais; a total deterioração do centro histórico torna a maioria dos seus prédios inabitáveis e o Estado toma a seu cargo muitos moradores que desloca para os novos bairros; estes, com rendas naturalmente "sociais", geram uma procura anormal e vão-se sobrelotando e degradando, obrigando à construção de outros bairros sociais que se transformam sempre em guetos marginais, assim eternizando o ciclo da miséria.

A Câmara do Porto é porventura o maior proprietário do País. Mas esse património, que poderia ser uma fonte de receita, é uma fonte de despesas crescentes. Dados recentes da APHM (Associação Portuguesa de Habitação Municipal), apontam para a existência de 56 fogos municipais por 1.000 habitantes, liderando claramente e a uma enorme distância de Gondomar, que vem a seguir com apenas... 17 fogos. Significa isto que, após investimentos feitos ao longo de várias décadas, quase 20% da população do Porto, algo como 40.000 pessoas, vive em bairros sociais e geralmente em condições infra-humanas.

Uma grande percentagem daquela população paga a renda mínima existente nos bairros, recentemente aumentada de 2 para 10 euros, num processo que motivou as indignações das comadres habituais (PS, PC e BE). E aqui reside a maior perversidade do sistema: sempre que um agente económico, seja indivíduo ou empresa, labora a custos de factores artificialmente baixos porque subsidiados, ele jamais conseguirá ser competitivo. Acontece com muitos habitantes dos bairros sociais, que se contentam com o subsídio de desemprego ou com o rendimento mínimo; acontece com os pequenos comerciantes da baixa que, pagando rendas exíguas em localizações prime, não internalizam um dos principais custos da sua actividade, não se preocupando então com inovação, design, qualidade do produto e do serviço, factores que criariam valor acrescentado e potenciariam maiores preços. O resultado é uma faixa importante da população pouco ambiciosa e que abdicou de crescer; o resultado é um comércio tradicional de fraca qualidade e que morrerá nos braços das grandes marcas.

Solução? Muito simplesmente, a liberalização completa do mercado do arrendamento. A conjuntura é actualmente a mais propícia para uma tal reforma, tendo em conta os enormes excedentes que existem no mercado imobiliário por colocar que, por si só inviabilizariam subidas bruscas das rendas. E ao nível da habitação social, faz mais sentido o Estado ou a Câmara subsidiarem pontualmente a renda de quem precise do que investir recursos em bairros uniclassistas que se transformam inevitavelmente em guetos onde grassa a miséria e a marginalidade.