14.6.05

O FIM DE UM MUNDO



Sempre me enjoou o fascínio da direita portuguesa por Álvaro Cunhal.
Mais do que respeitar a dimensão do «inimigo», do «hostis», daquele que quer impor a sua visão do mundo ao nosso mundo, mesmo que fazendo-o de forma ilegítima e violenta, a direita indígena venerava Álvaro Cunhal pelo complexo edipiano do líder ausente, do pai que não tinha. Mais do que respeito e admiração pelo «outro», por aquele que não nos pertence e que se nos opõem resolutamente, a direita venerava em Cunhal o «carisma», a «autoridade», a «disciplina», ou seja, a paternidade autoritária de que tanto sentiu e sente falta.

Não vale a pena, por esse prisma, olhar para Álvaro Cunhal, menos ainda na hora da sua morte. Ele foi, ao longo de décadas, um símbolo da sua gente, um ícone do sovietismo, uma bandeira do internacionalismo proletário e da revolução socialista. É bom não o esquecermos porque, estivesse ele vivo e lúcido, não quereria que tivesse sido doutro modo. Quando, na sequência da «perestroika», o seu mundo ruiu, Cunhal manteve-se-lhe fiel. Teve dignidade e grandeza, ao contrário de muitos outros que pareciam ter descoberto as atrocidades do Império Soviético na década de 90, depois de tudo o que se passara, por esse mundo fora, nos anos da expansão. Cunhal, não.
Quando Gorbachev veio, depois do fim da URSS, a Portugal, ele resumiu-se exemplarmente ao dizer que não se sentaria à mesa do deposto líder soviético, por ele ter «feito muito mal ao seu país, ao socialismo e à humanidade».

O pequeno mundo do Dr. Cunhal assentava em pilares teoricamente simples e elementares. Ele era um agente do «internacionalismo proletário», que o «Pequeno Dicionário Político» editado em 1980 pelo Partido Comunista da URSS, para ávido consumo dos seus fiéis, definia como «a solidariedade internacional, o auxílio mútuo, a unidade de acção da classe operária, dos trabalhadores de todos os países». Um agente respeitado no «Politburo» pelos seus iguais, naquela que fora a pátria do comunismo, no «Sol da Terra», no «farol da Humanidade», isto é, na URSS, antes e depois do 25 de Abril, sobretudo, neste último caso, pela posição estrategicamente determinante que ocupou na sovietização das antigas colónias ultramarinas. Que, de resto, uma vez consumada, o fez abrandar determinantemente na radicalização da política continental, onde ele não tinha particulares ilusões, consciente da dificuldade em converter ao «alto ideal» do comunismo uma sociedade pequeno-burguesa e feudalizada da Europa Ocidental, que se deixara escravizar quarenta e oito anos, e que verdadeiramente ele desconsiderava.

O comunismo de Cunhal, e dos teóricos soviéticos do regime imperial, era verdadeiramente aristocrático e elitista. Segundo ainda o referido dicionário, ele era «a forma mais alta de organização humana (?) [que] encerra a possibilidade de um progresso ilimitado de produção material e da cultura espiritual, de uma perfeição sempre crescente da personalidade». Álvaro Cunhal, a par dos grandes nomes do sovietismo, fazia parte dessa elite dirigente, da «vanguarda do proletariado», minoria esclarecida e iluminada que tinha a obrigação histórica de impor, por meios ainda que violentos, o rumo fatídico e fatal da História. No fim de contas, o comunismo soviético foi a expressão moderna do aristocratismo imperial czarista, revestido por uma fina película de legitimação ideológica internacional. Nesse meio, nesse reduzido número de eleitos, Álvaro Cunhal era considerado.

Por isso, a morte de Álvaro Cunhal marca sobretudo porque ele era o último dos príncipes da corte de Moscovo que ainda sobrava no mundo dos vivos. Um fóssil persistente, que assistiu dramaticamente à derrocada do seu universo e da visão fatalista que tinha sobre a vida e o mundo. Afinal, ao invés do que vaticinara o Grande Profeta, as «contradições» que o capitalismo «encerrava em si mesmo» não foram suficientes para o liquidar e impor o comunismo como o «fim da História». A realidade tratou de desmentir as sua convicções e de fazer ruir tudo em que acreditara e pelo qual vivera.
Como um príncipe que foi para os seus, viveu exilado e sem reino nos últimos anos de vida. Derrotado, combalido, destroçado. Em prol da iconografia comunista de que será o último grande símbolo, muito maior do que Fidel, Álvaro Cunhal foi «ocultado», escondido, nos anos derradeiros. O «homem de ferro» não podia ser substituído por um velho amargurado e senil. Ninguém se lembra, nos últimos anos, de uma fotografia, uma imagem, uma declaração suas. Em nome do seu próprio mito, Cunhal retirou-se, fechou-se sobre a sua lenda e disciplinadamente aguardou o dia da sua morte. Chegou hoje.