13.6.05

O fim do sigilo fiscal ou como caçar moscas com granadas

As declarações de Fernando Ulrich (FU), na Conferência Anual do Diário Económico, ainda hoje fazem eco na imprensa escrita. No caderno de Economia do Público (só para «pagantes»), FU foi escolhido como a Personagem da Semana. O presidente executivo do BPI é o rosto mais visível da oposição ao projectado fim do sigilo fiscal, segundo o próprio «o maior ataque à iniciativa privada desde o 11 de Março de 1975». Importa notar que FU é, desde longa data, um defensor do levantamento do sigilo bancário para fins fiscais, posição essa assumida muito tempo antes da crise orçamental «decretada» por Vítor Constâncio, pelo que as afirmações ganham especial força.

Há liberais que não são contra a fraude e evasão fiscais, ou consideram que ela será uma espécie «pecado venial». Eu sou contra. Por uma única razão: ela representa um factor de desagregação social, geradora de fortes iniquidades entre os que suportam o sistema público e aqueles que acabam por beneficiar dele sem contribuir. É certo que tenho as maiores dúvidas que o Estado, caso conseguisse cobrar todos os impostos que lhe são devidos, diminuísse a despesa pública. É certo, por isso, que o facto de existir fraude e evasão fiscais evita que o Estado tenha um «enfarte», que a produtividade «real» seja mais baixa e que a pobreza seja maior. Só que não é defensável que a desintervenção do Estado seja feita por esta via, de uma forma não desejada e insustentável do ponto de vista social.

Continuando, uma das formas de diminuir a fraude (existem outras, porventura mais eficazes) é, de facto, investigar e punir os infractores. Os infractores. E não, tudo e todos, de uma forma indiscriminada.

Antes de mais, importa esclarecer - pois a generalidade dos portugueses não sabe - que hoje já não existe um sigilo bancário absoluto, mesmo em matéria fiscal; o seu levantamento pode ser autorizado judicialmente. Tal é, provavelmente, insuficiente. Para que se possa dar sequência a investigações, é necessário flexibilizar o sigilo bancário, permitindo que as entidades que necessitam da informação (v.g. Administração Fiscal) possam ter um acesso célere e em tempo útil a elementos relevantes sobre o património de um determinado contribuinte pretensamente incumpridor.

Agora, uma coisa é a flexibilização do sigilo bancário com intuitos investigatórios, outra é publicitação irrestrita das declarações fiscais.

Na verdade - e isto deveria ser óbvio - as restrições aos direitos e liberdades não podem, num Estado que pretende ser de Direito Democrático, ser decretadas de uma forma liminar. Uma dada lei, quando colida com direitos ou interesses legitimamente protegidos dos particulares, deve apenas permitir as medidas estritamente necessárias para atingir o fim a que se propõe, impondo somente aos cidadãos os sacrifícios que sejam inevitáveis.

Exige-se, pois, equilíbrio, justa medida, entre as iniciativas tomadas, os sacrifícios impostos aos particulares, e as vantagens obtidas.

Poder-se-á dizer que o fim do sigilo fiscal não acarreta quaisquer restrições à esfera dos direitos dos particulares: «Quem não deve não teme», tenho ouvido com frequência. Mas será mesmo assim? Será que uma Lei como a do fim do sigilo fiscal, com a latitude que se pretende dar, é assim tão «inodora» para os escrupulosos cumpridores das obrigações fiscais? Será que faz tanto sentido restringir a privacidade patrimonial de todos os portugueses para combater a evasão fiscal de alguns, cujos sectores de actividade estão perfeitamente identificados? Será que se obtém alguma vantagem adicional no combate à fraude e evasão fiscais com semelhante violação de um direito essencial dos cidadãos, como é a privacidade do seu património e de certos aspectos da sua vida particular?

Se alguém sempre pagou os seus impostos, faz sentido que a sua situação patrimonial possa ser legalmente devassada por qualquer cidadão que não seja portador de um interesse legítimo? Por exemplo, colegas de profissão que pretendem apenas saber qual o seu estatuto remuneratório para «digladiar» promoções na empresa, vizinhos, parentes desavindos, meros curiosos? Justificar-se-á dar cobertura legal à mesquinhez e à inveja? Não estaremos a abrir as portas à demagogia e a um clima do tipo «os ricos que paguem a crise»? Não estaremos por esta via a promover mais fraude e mais evasão fiscais?

Será que, face a estas (e outras) razões, este tipo de iniciativa tem acolhimento no plano constitucional?

Mais: as minhas reservas quanto ao fim do sigilo fiscal estendem-se também ao plano da eficácia. Campos e Cunha, aparentemente, é um acérrimo defensor, desde longa data, deste modelo, aparentemente bem sucedido (?) num país nórdico. Este benchmarking normativo, para ser efectivo, pressupõe que os portugueses, como esse tal povo nórdico, têm «vergonha na cara», e irão declarar aquilo que ganham, para poderem «enfrentar» os vizinhos. Eu, com franqueza, tenho as maiores dúvidas sobre a índole do português que foge aos impostos, e sobre a forma como «encara» os vizinhos. Este não será muito distinto do cidadão que acha muito bem que existam transportes públicos, para que o próprio possa ir de «carrinho» para o emprego sem engarrafamentos. Este é o cidadão para quem não pagar impostos não se traduz numa «vergonha», mas em motivo de orgulho. O fim do sigilo fiscal pode até ter um efeito perverso. Quem tenha sempre pago os seus impostos, de uma forma escrupulosa, vendo que os seus concorrentes não os pagam, será que irá fazer uma «queixa» nas Finanças, ou optar por não os pagar no ano seguinte? E mesmo que se queixe, o que irá fazer o Estado com as «informações» entregues, e que o legislador desejará que sejam às centenas de milhar. Investiga? Se houver quinhentas mil denúncias, o que irá fazer? Investiga todas? Ou só algumas? Quais? Teremos inspecções «selectivas»?

Campos e Cunha quer fazer de Portugal uma enorme «sala de aula» onde a «professora» pensa que resolve a indisciplina promovendo uma cultura de delação. Parte da solução do défice e das contas públicas passa a depender dos instintos de «vergonha» dos infractores e da exploração da inveja e do ressentimento dos cidadãos, instituindo um clima de vigilância constante. A opressão não virá só do Estado. Cada cidadão será, para cada um de nós, uma potencial ameaça. E não apenas os «incumpridores». Todos seremos, em potência. Porque, contra a inveja, ninguém está a salvo. E, em geral, os que pior se dão neste tipo de guerrilha social, são os mesmos de sempre, os cidadãos mais cumpridores. Os que terão no seu emprego perante os colegas de justificar o porquê do seu salário ser mais alto, os que terão de explicar aos seus filhos como é que, tendo um vencimento superior, vivem uma vida mais sóbria, os que terão de explicar aos seus superiores que merecem um aumento, apesar de disporem de outro tipo de rendimentos, que não do trabalho. Os que terão de resistir à inveja social, que por terem bons rendimentos, verão exigida na praça pública que paguem mais impostos. Enquanto os infractores, hipocritamente, esses, na sua maior parte, continuarão impunes.

Que raio de país é este, onde querem que a eficácia das normas dependa na mesma medida da má índole dos seus cidadãos? Onde, para caçar moscas, se utilizam granadas? O desespero é assim tão grande?

Rodrigo Adão da Fonseca