«Quem morre merece respeito...», diz o João Miranda.
À partida é verdade. Mas o meu respeito pelos mortos não se distingue muito do que tenho pelas pessoas vivas. Quem não me merece respeito vivo, certamente não o terá pelo simples facto natural de ter falecido.
Em relação a Álvaro Cunhal (nunca quanto ao clown que morreu no Sábado) é inevitável uma certa admiração pessoal pela sua coragem física e pelo seu vigor intelectual.
Mas esses sentimentos desvaneceram-se quando os nossos media começaram a tratar a sua morte no mesmo plano com que os adoradores da "santinha da ladeira" prestam as suas devoções.
Nesse contexto, só já me consigo lembrar do defensor dos mais terríveis totalitarismos que a desumanidade inventou, do homem que apoiou a lógica dos Gulags e o extermínio de milhões de opositores políticos na URSS e nos demais países que esta dominou.
Agora, já só recordo a defesa que Cunhal fez da invasão da Hungria em 1956, de que esteve ao lado dos russos quando estes esmagaram o povo checo em 1968, de que os voltou a amparar quando estes invadiram o Afeganistão em 1979 e de que considerou, dez anos depois, a queda do muro de Berlim um passo atrás na história.
Agora, graças à bajulação reinante, recordo-me da face feroz de quem dizia que queria partir os dentes à reacção (sendo que esta englobava parte do PS e tudo o que existisse para além daí) e da sua luta incessante para instaurar uma ditadura no meu país.
Só me vem à memória a imagem de um homem com a estranha coerência de uma pedra de granito que acreditava, em plenos anos 90, nas mesmas soluções por que tinha lutado nos anos 30.
Graças a esta pia adulação que nos estão a impingir, relembro aquilo que até já tinha esquecido: que hoje só somos livres porque Cunhal e os seus foram derrotados!
O luto nacional de amanhã é um DESRESPEITO pelo conceito da Liberdade porque visa homenagear quem tudo fez para a aniquilar.
Não passa de um esforço de lavagem da má consciência dos titulares deste regime que ainda hoje sofrem agruras estomacais por terem ido tratar da sua vidinha para outras paragens políticas enquanto que o seu ídolo de juventude permanecia igual ao que sempre tinha sido.