"A Ilíada", de Homero, é, sem sombra de dúvida, um dos livros basilares da civilização europeia.
Ao longo de 24 capítulos ("Cantos"), Homero dá conta da guerra entre Aqueus ("Gregos") e Troianos, a qual teria tido lugar nas imediações de Ílion (Tróia).
Nesta breve análise à obra, tocaremos alguns pontos dignos de nota, pontos esses que se fazem notar ao longo de uma narrativa que, essencialmente, trata de guerra. A guerra, no tempo de Homero, parece ter sido algo de particularmente importante, na perspectiva do autor, que lhe consagrou, em larga medida, a obra em análise. Passados bastantes anos, o que podemos concluir é que a guerra se mantém tema actual, pela sua continuada importância. O Helesponto (Dardanelos) nas imediações da região onde decorre o conflito, assistiu, desde Homero, a numerosos conflitos.
Aspecto de particular relevo é a interligação entre os aspectos da narrativa relativos aos sucessos da campanha bélica e o constante acompanhamento e constante interferência por parte de entidades divinas. "A Ilíada" constitui, porventura, um meio privilegiado para compreender alguns aspectos de uma visão politeísta do mundo, a qual se associou ao nascimento da civilização europeia.
A existência de múltiplas divindades, com sentimentos frequentemente antagónicos entre si, e posturas que, à semelhança dos humanos, sofriam variações com o passar do tempo, forneciam um enquadramento para as vicissitudes da vida, constituída, com frequência, pela alternância de êxitos e de fracassos. Para além disso, o autor dá-nos conta de que
"Há, sobre a soleira do palácio de Zeus, duas jarras de todos os dons que ele nos dá, uma de males, a outra de bens" (canto XXIV).
A ligação entre deuses e humanos, com a geração de descendência, fenómeno frequente segundo Homero, agravava o empenho das divindades que, no caso particular da guerra de Tróia, contavam entre os beligerantes com alguns descendentes de seres divinos.
As interferências divinas não eliminavam totalmente a possibilidade da escolha por parte dos humanos, constituindo ponto central da narrativa aquele no qual Aquiles dá conta de lhe ter sido revelado poder optar entre uma vida curta mas acompanhada de glória imortal, e uma vida longa mas destituída de glória (Canto IX). A escolha é feita, em favor da primeira hipótese, mas apenas, de forma definitiva, após a morte do seu camarada de armas, Pátroclo. As escolhas humanas são apresentadas, com frequência, como meramente fictícias, uma vez que seguem um rumo previamente traçado.
Aspectos evidenciados pela narrativa são a importância do juramento (Cantos III, IV) e da quebra de contrato (Canto XXI), o mesmo se dizendo da inteligência (Canto XXIII):
"O lenhador vale muito mais pela ideia do que pela força".
Sem prejuízo do atrás referido, para o poeta,
"mudar de sentimento é apanágio dos seres nobres" (Canto XV).
O episódio da corrida de carros (Canto XXIII) serve ainda para ilustrar o conceito de Justiça, quando é feita uma tentativa para entregar um prémio a quem não atingiu a posição devida no final da corrida. A recusa de Aquiles em combater deriva, ela própria, de uma injustiça.
O relato de Homero em "A Ilíada" não acompanha a guerra até ao seu final, embora o leitor seja informado do respectivo desfecho.
O final da obra diz respeito a uma questão que parece ter ocupado papel importante nas preocupações da Grécia Antiga: o destino dos corpos após a morte, tema que, de resto, surge noutras obras (e.g. "Antígona", de Sófocles).
Homero descreve, no canto XXIII, o modelo de funeral desejável, por antítese com a situação em que se encontrava o cadáver do troiano Heitor, arrastado amarrado a um carro. O cadáver de Heitor acabou por ser restituído aos seus, na sequência de uma decisão nesse sentido tomada por Zeus, segundo o relato de Homero.
A causa da guerra é também digna de menção. Trata-se de uma tentativa de vingança relativamente a um homem que traiu a confiança de um marido ao seduzir a respectiva mulher. A guerra ter lugar por causa de uma mulher, muito bela é certo, é igualmente revelador do estatuto que pelo menos algumas mulheres detinham na altura. Já do lado troiano, a motivação é clara - a defesa da pátria (Canto XII).
Em "A Ilíada", Homero apresenta o cariz efémero da vida humana, na dependência, em qualquer momento, de a lança matar o inimigo ou ser a lança do inimigo a matar o próprio. Homero defende a imortalização dos mortais através da glória, ou seja, a imortalização através da obra humana.
Para além deste tema, é a dignidade humana que marca o livro, o qual, salvo melhor opinião, se desenvolve de forma a se poder dizer que a dignidade da pessoa não se esgota com a morte. O respeito pelo cadáver, manifestação póstuma do respeito pela dignidade da pessoa, deve sobrepor-se ao ódio entre inimigos. É que, para Homero, tratar-se-ia, deveras, de uma ordem de Zeus.
José Pedro Lopes Nunes
Nota: "A Ilíada" está disponível (versão em inglês) em http://classics.mit.edu/Homer/iliad.html.
Traduções em português foram publicadas pelas Publicações Europa-América (de onde foram retiradas as citações apresentadas no texto) e pelos Livros Cotovia.