2.9.05

O furacão Katrina

Estou espantado com a forma como se tem utilizado uma catástrofe natural para diminuir a América e o seu Presidente. E olhem que este que vos escreve nem sequer morre de simpatias por Bush. Mas, como bem assinala o Henrique Raposo, parece que «os ricos» do outro lado do Atlântico não têm direito à compaixão.

O Katrina «soprou» a mais de 250 km/hora. Em certas zonas, a água subiu seis metros(!) em relação ao seu nível habitual.

A cidade está a está a saque. Há quem compare - não sem ironia e até com algum cinismo e deleite - Nova Orleães a Bagdad, recriminando Bush por não conseguir no imediato repor a lei e a ordem. À semelhança do 11 de Setembro, os inimigos da América procuram com estes casos denegrir aquela que é a mais sólida democracia do mundo. Diz-se que se devia ter feito «x»; ratificado o protocolo «y». Que era «evidente». Gargalhadas histéricas acompanham as patéticas declarações de Hugo Chavez e Fidel Castro. Que Nova Orleães «parece» um país do Terceiro Mundo.

Certamente o é. Neste preciso momento, Nova Orleães, e tudo o que ela representava, desapareceu do mapa. Apenas resta o caos.

Ao ver Nova Orleães na televisão, lembrei-me de Thomas Hobbes, filósofo inglês bem conhecido na América, mas cuja visão realista não é acompanhada pela Europa Utópica.

Quem leu Hobbes sabe bem que a verdadeira essência da natureza humana o leva a querer sempre mais e mais poder; sabe que, fora de uma comunidade política devidamente organizada - num «estado de natureza» - num ambiente onde o homem permaneça isolado, entregue apenas a si mesmo, existe a aniquilação natural do mais fraco pelo mais forte. Por isso defende Hobbes a passagem para um «estado de sociedade», fundada na necessidade de se exercer um controle sobre a natureza humana, sobre os seus ímpetos de poder ilimitado: a institucionalização do Estado representa pois uma decisão racional em que se troca a «liberdade ilimitada do estado de natureza» - a qual, contudo, tem pouco pouco valor - por uma «liberdade em sociedade», onde esta é mais efectiva, porque exercida em segurança.

De um dia para o outro, toda uma organização social construída ao longo de séculos, foi aniquilada por força da natureza; hoje, as pessoas que permaneceram em Nova Orleães conservam apenas os seus «direitos de natureza», dependendo de si próprios para preservar suas vidas. Hoje, limitam-se a exercer o seu «direito à sobrevivência».

O Katrina teve a infelicidade de nos lembrar - para quem se tivesse esquecido disso - que a democracia não funciona por decreto, e que só é efectiva quando as suas instituições são fortes. E que a força da natureza, no limite, é sempre superior à capacidade dos homens de se organizarem.

A América sempre teve consciência disso. A sociedade americana está organizada para ultrapassar estas dificuldades. Há quem considere que a economia pouco conta, ao lado da «vontade» das pessoas, mas o facto da generalidade da população ter as suas propriedades seguradas, o facto de existirem fundos de reserva de mobilização imediata, o facto de haver todo um tecido social apto a actuar irá certamente permitir que se minimizem os prejuízos.

Tudo isto vale pouco, quando se vê tanto sofrimento; mas, depois da tragédia, que é irreversível - não adianta pensar que o Homem pode sempre contrariar a força da Natureza - ter condições objectivas e instituições fortes ajuda a que rapidamente se possa repor a normalidade. Normalidade que se irá impor lentamente, a um ritmo que não acompanha os timings mediáticos.

E os críticos da América? Estão orgulhosos das suas instituições democráticas? Sentem a consciência tranquila por terem colocado as suas Utopias nas diversas ordens constitucionais? Perante um furacão, será que Portugal e a Europa conseguiriam voltar imediatamente à normalidade? Em Portugal, por exemplo, quantas pessoas têm seguros a cobrir o seu património? Que fundos dispomos para cobrir uma tragédia? Basta recordar os incêndios, para perceber que, quando a desgraça nos bate à porta, ficamos entregues a nós próprios e à nossa frágil condição.

Para abalar a democracia numa cidade da América foi necessária a fúria da natureza e um furacão de grande magnitude. Na Europa, infelizmente, ela vai sendo destruída pelos homens ao sabor de uma ligeira brisa mas que para nossa desgraça sopra constante ...

Rodrigo Adão da Fonseca