1. Mais de trinta anos passados sobre a data de 25 de Abril de 1974, poderá colocar-se a seguinte questão: o que ficou por fazer?
Muita coisa, provavelmente, mas uma, em particular: a revisão geral da legislação originada por um regime não democrático. O regime então deposto, de cariz corporativo, terá sofrido várias influências, ao longo da sua história, de algumas ideias entretanto caídas em desgraça.
Tais influências apontavam no sentido de um forte desequilíbrio nas relações entre o cidadão e o Estado, em favor deste último, ou seja, no sentido de impor uma forte limitação da liberdade individual. Também o seu cariz corporativo se fazia sentir, designadamente pelo facto da economia não se encontrar, em muitos casos, aberta ao conjunto da sociedade, não permitindo o acesso de todos os cidadãos, em pé de igualdade, às diversas actividades económicas.
Alguma da legislação que sobrou até ao momento presente reflecte muitas das tendências ideológicas da época. Na perspectiva do cidadão contemporâneo, contudo, a submissão de cada um a normas geradas e originalmente validadas por entidades não democráticas pode ser motivo de forte perplexidade, quando não de profunda e completa rejeição intelectual: se não é reconhecida a validade do regime então deposto, como é possível reconhecer a validade da legislação por ele aprovada? De uma forma geral, será lícito pedir a alguém para se submeter a normas assinadas por ditadores?
Um documento que pode ser considerado interessante para a análise desta questão é o "Diário do Governo" do dia 25 de Abril de 1974. A sua 1ª série é constituída por um número regular e por um suplemento. Contendo este último normas ditadas pelas autoridades revolucionárias da época, apresenta-se com aparente naturalidade na sequência de um outro texto ditado por uma outra autoridade. Em muitas bibliotecas, os volumes, entretanto encadernados, poderão não deixar transparecer ao observador distraído mais do que um breve fulgor revolucionário intercalado entre textos legislativos produzidos de forma regular, antes e depois de 1974, textos esses aos quais é aparentemente concedida actualmente igual dignidade e igual força enquanto Lei.
Continuar a fazer o 26 de Abril consiste, entre outros aspectos, em promover a revisão generalizada de muita legislação anterior a 1974 que, ao contrário de outra que foi expressamente revogada, ainda hoje subsiste, muito embora se possa ter baseado em pressupostos políticos, éticos e filosóficos entretanto reconhecidos como inapropriados. As relações entre os cidadãos e o Estado e a persistência de algumas normas de cariz corporativo são apenas dois exemplos do tipo de textos cuja revisão ainda hoje poderá ser necessária.
2. Outro documento com eventual interesse é a Lei 2125, de 1965, relativa à propriedade das farmácias. O texto inicia-se por "Em nome da nação, a Assembleia Nacional decreta e eu promulgo a Lei seguinte", sendo a referida norma legal da responsabilidade de Américo Deus Rodrigues Thomaz e de António de Oliveira Salazar.
Podemos admitir que, muito tempo depois da transição de regime, Rodrigues Thomaz e Oliveira Salazar continuaram a influenciar Portugal, através, designadamente, da referida Lei 2125.
Foi necessário esperar pelo ano de 2006 para que uma entidade estatal, a Autoridade da Concorrência, apresentasse um projecto de recomendação no sentido de promover uma adequação do sector farmacêutico à actual realidade jurídica, económica e social de Portugal, caracterizada, desde logo, pela existência de uma igualdade de direitos.
É que estará na altura de Portugal abandonar, definitivamente, os restos da Idade Média que ainda actualmente subsistem, quer se encontrem apenas nas mentalidades ou se situem na própria Lei.
José Pedro Lopes Nunes
Nota: a primeira parte deste texto foi publicada no jornal "O Primeiro de Janeiro" em Março de 2004.
Muita coisa, provavelmente, mas uma, em particular: a revisão geral da legislação originada por um regime não democrático. O regime então deposto, de cariz corporativo, terá sofrido várias influências, ao longo da sua história, de algumas ideias entretanto caídas em desgraça.
Tais influências apontavam no sentido de um forte desequilíbrio nas relações entre o cidadão e o Estado, em favor deste último, ou seja, no sentido de impor uma forte limitação da liberdade individual. Também o seu cariz corporativo se fazia sentir, designadamente pelo facto da economia não se encontrar, em muitos casos, aberta ao conjunto da sociedade, não permitindo o acesso de todos os cidadãos, em pé de igualdade, às diversas actividades económicas.
Alguma da legislação que sobrou até ao momento presente reflecte muitas das tendências ideológicas da época. Na perspectiva do cidadão contemporâneo, contudo, a submissão de cada um a normas geradas e originalmente validadas por entidades não democráticas pode ser motivo de forte perplexidade, quando não de profunda e completa rejeição intelectual: se não é reconhecida a validade do regime então deposto, como é possível reconhecer a validade da legislação por ele aprovada? De uma forma geral, será lícito pedir a alguém para se submeter a normas assinadas por ditadores?
Um documento que pode ser considerado interessante para a análise desta questão é o "Diário do Governo" do dia 25 de Abril de 1974. A sua 1ª série é constituída por um número regular e por um suplemento. Contendo este último normas ditadas pelas autoridades revolucionárias da época, apresenta-se com aparente naturalidade na sequência de um outro texto ditado por uma outra autoridade. Em muitas bibliotecas, os volumes, entretanto encadernados, poderão não deixar transparecer ao observador distraído mais do que um breve fulgor revolucionário intercalado entre textos legislativos produzidos de forma regular, antes e depois de 1974, textos esses aos quais é aparentemente concedida actualmente igual dignidade e igual força enquanto Lei.
Continuar a fazer o 26 de Abril consiste, entre outros aspectos, em promover a revisão generalizada de muita legislação anterior a 1974 que, ao contrário de outra que foi expressamente revogada, ainda hoje subsiste, muito embora se possa ter baseado em pressupostos políticos, éticos e filosóficos entretanto reconhecidos como inapropriados. As relações entre os cidadãos e o Estado e a persistência de algumas normas de cariz corporativo são apenas dois exemplos do tipo de textos cuja revisão ainda hoje poderá ser necessária.
2. Outro documento com eventual interesse é a Lei 2125, de 1965, relativa à propriedade das farmácias. O texto inicia-se por "Em nome da nação, a Assembleia Nacional decreta e eu promulgo a Lei seguinte", sendo a referida norma legal da responsabilidade de Américo Deus Rodrigues Thomaz e de António de Oliveira Salazar.
Podemos admitir que, muito tempo depois da transição de regime, Rodrigues Thomaz e Oliveira Salazar continuaram a influenciar Portugal, através, designadamente, da referida Lei 2125.
Foi necessário esperar pelo ano de 2006 para que uma entidade estatal, a Autoridade da Concorrência, apresentasse um projecto de recomendação no sentido de promover uma adequação do sector farmacêutico à actual realidade jurídica, económica e social de Portugal, caracterizada, desde logo, pela existência de uma igualdade de direitos.
É que estará na altura de Portugal abandonar, definitivamente, os restos da Idade Média que ainda actualmente subsistem, quer se encontrem apenas nas mentalidades ou se situem na própria Lei.
José Pedro Lopes Nunes
Nota: a primeira parte deste texto foi publicada no jornal "O Primeiro de Janeiro" em Março de 2004.