10.12.06
a esfera cívica
Qualquer déspota tolera , e até encoraja, que os seus súbditos governem os seus assuntos privados. Aquilo que ele não pode tolerar é que eles ambicionem governar os assuntos públicos. E, neste aspecto, é praticamente irrelevante se o despotismo é exercido por um só homem ou por um governo e por uma administração pública da maioria.###
Por isso, qualquer déspota razoavelmente esclarecido jamais hesitou em conceder aos seus súbditos ampla liberdade na esfera privada ou económica, porque enquanto eles andavam entretidos a ganhar dinheiro e a cuidar dos seus interesses pessoais não se imiscuiam na governância das coisas públicas. Aquilo que ele sempre lhes restringiu, nuns casos proibindo, noutros dificultando até aos limites da sua capacidade, foi o exercício das liberdades cívicas.
A esfera cívica é aquela esfera da vida social que medeia entre a esfera privada, onde os homens se acham a cuidar dos seus interesses próprios, e a esfera pública onde um homem ou um grupo de homens, colocado na administração da sociedade, emite decisões aplicáveis a todos os outros - e decisões que possuem um carácter coercivo - usando o Estado como o monopólio da força.
Na esfera cívica, os homens são levados a encontrar-se, geralmente de forma voluntária, para resolverem preocupações comuns, necessidades comuns, anseios comuns e ideais comuns, geralmente possuindo um carácter local ou restrito: construir uma estrada, uma igreja, fazer uma escola; edificar um museu ou uma casa para os sem-abrigo; fazer um troço de caminho-de-ferro ou abastecer de água a aldeia; criar um parque infantil ou um centro de ocupação para a terceira-idade.
Estas são as actividades onde cada homem reconhece os limites da sua capacidade individual e os benefícios de viver em comunidade. É por aqui que cada homem é levado a sair da sua esfera privada e a cooperar com os outros para fazer algo de maior e mais transcendente do que aquilo que as suas próprias capacidades individuais lhe permitiriam fazer.
É por este meio que os homens são levados a estabelecer laços comunitários entre si e a apreciarem-se mutuamente nos frutos do seu trabalho conjunto. É assim que nasce o espírito comunitário, essa poderosa antecâmara do espírito público que ocorre quando cada homem imagina os benefícios dessa actividade voluntária e cooperativa estendida a toda a sociedade, e não já meramente aos limites do seu bairro ou da sua aldeia.
Muitos anos de iniciativas comuns, de trabalho comum, de entusiasmos e dificuldades comuns, e também de satisfações comuns, permitiram a cada homem conhecer e apreciar o carácter de cada um dos outros. É neste apreço mútuo, no reconhecimento de que os outros são importantes para o bem-estar de cada um e de todos, que se fortalecem os laços comunitários que são a base da verdadeira cidadania.
Por isso, a esfera cívica constitui uma barreira formidável contra os abusos e as intromissões dos poderes do Estado. No dia e que o Estado decida cometer um abuso sobre algum destes homens, ele não vai estar só na sua defesa. Com ele, vão estar todos aqueles que o conhecem e apreciam por virtude de muitos anos de trabalho e entrega comum em obras de benefício comum.
É este mesmo espírito que, extrapolado a toda a sociedade, leva cada cidadão a nutrir uma atitude de simpatia e apreço pelos seus concidadãos, ainda que não os conheça pessoalmente - em lugar de os detestar. É ainda este espírito que levará mais tarde cada homem e todos os homens a levantarem-se em peso na defesa de um seu concidadão ou grupo de concidadãos que seja vítima de um qualquer abuso por parte do Estado - em lugar de permanecerem indiferentes ou até aplaudirem o abuso.
Mas nós não devemos esperar este espírito em Portugal, porque a esfera cívica da sociedade está praticamente vazia.