10.12.06
Licença
Nenhuma instituição, nem mesmo a censura, contribuiu tanto - e cada dia que passa contribui ainda mais - para aniquilar a esfera cívica da sociedade portuguesa e reduzi-la a um imenso vazio, do que a instituição da licença e todos os seus similares - a autorização administrativa, o parecer da entidade pública, o alvará, o registo público.###
A esfera cívica é a arena por excelência das instituições livres - instituições que se destinam a servir o público quer no sentido amplo quer no sentido restrito de uma comunidade local ou sectorial. Porém, a tradição portuguesa arruinou de tal maneira a ideia de instituições livres, que eu receio ser mal compreendido - senão mesmo incompreendido de todo - se não definir claramente, e não exemplificar, o que são instituições livres.
Instituições livres são instituições que não estão sujeitas ao controlo ou à tutela do Estado - uma escola livre da tutela do Estado, uma creche livre da tutela do Estado, uma sociedade científica livre da tutela do Estado, uma estrada construída por um grupo de cidadãos, livre da tutela do Estado, um parque infantil, uma rádio local, um teatro livres da tutela do Estado.
Um grupo de pais em certa localidade, insatisfeito com a educação que é ministrada aos seus filhos na escola pública ou privada local, decide juntar-se e, numa iniciativa puramente cívica, fundar uma escola. Desejam criar uma escola com programas inovadores e mais adaptados às necessidades dos seus filhos, contratarão os melhores professores e farão impôr os graus mais adequados de disciplina e exigência académica.
Começam por arrendar ou comprar - contratando para o efeito um empréstimo - um antigo edifício que transformarão numa escola modelar. Porém, começam aí as primeiras dificuldades. É preciso pedir licença à Câmara. Na realidade vão ser necessárias várias licenças (v.g., licença para alteração do destino do edifício e licença de construção, a qual, só por si, exige vários projectos de arquitectura, um na generalidade, vários na especialidade) e vários pareceres de entidades públicas ( v.g., águas e saneamento, electricidade, património cultural, direcção-geral das construções escolares, bombeiros) antes que eles possam começar as obras. Em média, estas licenças e pareceres demoram quatro anos a serem produzidos.
A multiplicidade de licenças e a demora na sua atribuição está feita para desencorajar toda a iniciativa cívica. Porém, se os cidadãos promotores não desistiram até aqui ou não se arruinaram pelo caminho - porque a renda do edifício ou a amortização do empréstimo ao banco corre todos os meses, para já não mencionar o pagamento das licenças - vão agora poder começar as obras, as quais demorarão, provavelmente, dois anos.
Findas as obras, terão de aguardar que a Câmara lhes conceda a licença de utilização para que possam utilizar o edifício, a qual só será atribuída depois da vistoria. Entretanto, os filhos que tinham 10 anos quando eles decidiram iniciar o projecto têm agora 16 e estão à beira de entrar para a Universidade.
Mas os promotores são persistentes. E decidem que, mesmo que não seja para os seus filhos, a escola será para o benefício das outras crianças da comunidade local. Será uma escola modelar, com professores de primeira categoria e programas inovadores. A escola está agora a funcionar. Porém, passado um mês, aparece no jornal local a notícia, plantada por fonte anónima, de que a Escola está a funcionar ilegalmente porque os seus programas não estão aprovados pelo Ministèrio da Educação.
Os cidadãos promotores correm para Lisboa, para a Avenida 5 Outubro onde são informados por um mero funcionário que a lei não permite que eles leccionem na Escola programas que não estejam aprovados pelo Ministério da Educação. E informa-os que, ou adoptam os programas oficiais, ou a sua Escola será fechada. Entretanto, a própria reputação da Escola ficou abalada por vários anos.
Termina assim a iniciativa cívica destes cidadãos que desejavam criar uma escola livre da tutela do Estado. E a esfera cívica - no campo da educação -, se estava vazia, vai continuar vazia para sempre.