8.12.06

não gostam uns dos outros



Provavelmente uma das marcas de carácter mais salientes de uma população possuindo uma longa tradição de liberdade é o sentimento de simpatia que cada cidadão nutre pelos seus concidadãos. Este sentimento de simpatia, que conduz cada homem a colocar-se na situação do outro, induz um sentimento de solidariedade espontânea entre os cidadãos, que constitui uma barreira, quase sempre intransponível, contra qualquer tentativa de abuso por parte dos poderes do Estado.###

Porém, para o observador externo da sociedade portuguesa, uma das constatações mais imediatas, e uma das mais surpreendentes, é a de que os portugueses não gostam uns dos outros. Exceptuando-se a si próprio, a sua família e o seu núcleo restrito de amigos, o cidadão português não gosta dos seus concidadãos. Não me alongarei aqui a exemplificar este traço do carácter português, que se exibe em qualquer conversa pública ou privada, bastando talvez recomendar a leitura das caixas de comentários deste próprio blogue.

A razão para este traço de carácter da população portuguesa reside numa tradição secular de vida em sociedade onde o valor da liberdade nunca pontificou e que, pelo contrário, foi marcada predominantemente pelo autoritarismo e pelo despotismo. Três décadas de vivência democrática não chegaram para o alterar e, na minha opinião, nem sequer existem sinais de qualquer melhoria. Ao invés, a democracia possui o potencial para o acentuar.

Séculos de regimes autoritários e frequentemente despóticos em Portugal não poderiam produzir outro resultado. Como notou Tocqueville, um déspota tolera que os seus súbditos não gostem dele, aquilo que ele não pode tolerar é que os seus súbditos gostem uns dos outros. Na realidade, o sentimento generalizado de simpatia e solidariedade espontânea entre os seus súbditos seria a condição suficiente para o apear do poder.

Este traço do carácter português - e de todos os povos que viveram longos períodos da sua história sob regimes despóticos - torna toda a liberdade uma experiência precária. Hoje, o Estado comete um abuso sobre um certo grupo de cidadãos. Numa sociedade em que ninguém gosta de ninguém - excepto de si próprio, da sua família e dos seu grupo restrito de amigos - os outros toleram o abuso e até o aplaudem. Amanhã, o grupo de cidadãos abusados será diferente, mas o processo é o mesmo: entre os outros, ninguém levanta a voz e, frequentemente, até encorajam os agentes do Estado a cometer o abuso e os felicitam por isso.

A prazo, este processo não pode senão conduzir ao despotismo, e a democracia não é defesa contra ele. Na realidade, a democracia é até o seu agente, porque a nova forma de despotismo aparece agora legitimada por eleições populares.