10.12.06

o vício que o despotismo produz



O vício que o despotismo produz é o mesmo que a democracia alimenta - esse egoísmo radical que leva cada homem, concentrado que está na prossecução dos seus próprios interesses e só deles, a isolar-se de todos os outros e a viver na sociedade como se fosse uma ilha.###

O déspota estimula o egoísmo radical no seu próprio interesse, porque ao isolar os súbditos uns dos outros mata à nascença todo o espírito público, e assim se perpetua no poder. Para a democracia, esse egoísmo radical é a consequência não-pretendida do único resultado razoavelmente certo que a democracia produz - uma tendência irresistível para a igualização das condições materiais de vida entre todos os cidadãos.

Agora que a multidão, através do seu governo democraticamente eleito, manda na bolsa dos ricos, ela vai começar por fazer pagar aos ricos condições de vida decentes para os pobres. Quando os ricos se tiverem tornado mais escassos e os pobres também, será a vez de a classe média e de a classe média-baixa, através do seu governo democraticamente eleito, fazerem pagar à classe média-alta outros benefícios da civilização a que também se sentem com direito. Este processo só vai parar quando as condições materiais de vida entre todos os cidadãosse tiverem tornado virtualmente iguais.

Ao mesmo tempo que este processo de igualização - que tem o Estado democrático como actor principal -, se desenvolve na esfera das condições materiais de vida, na esfera política os partidos com ambições de poder vão também convergindo para a média. A prazo, não existirão senão dois grandes partidos políticos que se alternam no poder, ambos com programas essencialmente idênticos e que só diferem em questões de pormenor, e em que a escolha dos eleitores será feita mais pela personalidade dos seus respectivos líderes, do que por alguma diferença programática substancial existente entre eles.

Para os cidadãos, as condições de vida são agora essencialmente iguais. Todos nascem em maternidades tuteladas pelo Estado. Todos frequentam infantários tutelados pelo Estado. Na escola, os programas serão iguais para todos e tutelados pelo Estado, e nas universidades também. Pouco importa que, nalguns casos, as maternidades sejam privadas, ou que sejam privados os infantários, as escolas ou as universidades. Elas estão sujeitas a autorização, a definição de programas e a fiscalização do Estado - o que, na prática, as torna quase indistinguíveis das suas congéneres públicas.

Chega então a idade de os cidadãos entrarem no mercado de trabalho. Muitos terão emprego no Estado, os outros terão de o procurar no sector privado. Mas se não o encontrarem, existem programas do Estado para a inserção dos jovens na vida activa. E se o emprego falhar, existe o subsídio de desemprego assegurado pelo Estado e, findo este, existem programas de assistência financeira para os desempregados de longa duração também pagos pelo Estado. Chegada a idade da reforma, todos terão pensões asseguradas pelo Estado. E é praticamente certo que todos acabarão por morrer nalgum hospital tutelado pelo Estado.

Quando a vida de todos os cidadãos se tornou igual assim, ninguém precisa de ninguém. Que sentido de comunidade, que espírito público poderemos nós esperar daqui? Nenhum. A única coisa que poderemos esperar é que cada um se ocupe a viver a sua vida independentemente daquilo que acontece aos outros, e na maior indiferença por aquilo que acontece aos outros, tanto mais que, em condições normais, cada um sabe, ou presume, que os outros estarão a viver uma vida que não é muito diferente da sua.