«Façam-na no bairro dos ricos!» - mais palavra, menos palavra, foi assim que reagiram os habitantes do bairro social do Charquinho à decisão da Câmara Municipal de Lisboa de instalar uma sala de chuto naquele bairro.
Não acredito que os habitantes do Charquinho venham a ser bem sucedidos na sua reivindicação. Eles deveriam ter recorrido a argumentos de ricos o que implica usar palavras como trauma, «supermercado» disto e daquilo... Ou seja deveriam ter seguido o exemplo dos habitantes de Alvalade aquando da sua bem sucedida contestação à instalação dumas capelas mortuárias que a CML licenciara naquele bairro. Como se sabe as ditas capelas acabaram atiradas para a periferia ou seja para uma zona de pobres.###
Não sei avaliar com rigor o impacto que tem na vizinhaça uma sala de chuto mas parece-me que não será certamente menor que o dumas capelas mortuárias.
Já lá vai o tempo em que os cidadãos se arrumavam em clero, nobreza e povo. Ou entre proletariado versus burguesia. Tudo isso agora é passado.
Os novos pobres são aqueles que dependem do Estado. Aqueles que não ganham o suficiente para pagarem os impostos, a segurança social, as taxas e simultaneamente construirem uma vida aparte, em que dispensam os serviços que esse mesmo Estado presta.
Na base da pirâmide estão aqueles que, tal como acontece com os moradores do bairro do Charquinho, podem ver (ou acreditam que podem) todo o seu quotidiano alterado por uma decisão governamental ou municipal. Do valor das pensões às consultas disponíveis no centro de saúde, tudo ou quase tudo na vida deles é regulado pela figura do Estado.
O Estado, ou melhor dizendo a Câmara Municipal de Lisboa, que não consegue dar conta de matérias autárquicas como o trânsito e o urbanismo, resolveu ao abrigo duma «estratégia municipal de intervenção para as dependências» colocar-lhes uma sala de chuto à porta de casa. A eles tal decisão aparece-lhes como uma afronta, tanto mais que, para justificar a localização escolhida, os técnicos recorrem a expressões que se colam à pele como «bairros de consumo».
Não pretendo discutir nesta crónica os bons ou os maus préstimos das ditas salas de chuto mas tenho a certeza que quem mais condena a reacção dos habitantes do bairro do Charquinho não vive lá. Tal como também não colocam os seus filhos nas escolas públicas muitos daqueles que produzem as mais belas teorias sobre o espaço de ensino-aprendizagem e muito menos frequentam os transportes públicos em determinadas áreas ou horários aqueles que discursam em seminários sobre multiculturalismo.
Estes são os cidadãos que conseguiram organizar a sua vida sob o um modelo que se pode classificar como modelo do 'condomínio fechado'. Este caracteriza-se por os seus membros defenderem para os outros tudo aquilo de que se conseguiram preservar a eles mesmos. Tudo está previsto para os outros. Até onde devem fazer as compras!
Para a casta do condomínio fechado as grandes superfícies começaram por ser um problema estético. Eram 'pirosas'. Agora estamos na fase em que se pretende instituir que o comércio tradicional se revitalizaria caso não se autorizassem grandes superfícies e exige-se que as existentes pratiquem horários mais restritos. É óbvio que quem assim fala exerece uma profissão sem grandes rigores de horário, desloca-se bem, sem crianças nem bengalas, dispensa de bom grado descontos e provavelmente até vive numa casa climatizada, caso contrário perceberia que nas vilipendiadas grandes superfícies, tal como no Mac Donald?s, se encontram muitas pessoas que por razões de mobilidade, horários e rendimentos dificilmente poderiam fazer noutros locais as mesmas compras, com o mesmo grau de conforto.
Outro assunto que a casta do condomínio fechado não admite que se aborde é a questão da segurança. Mais precisamente eles seleccionaram a violência de que se pode falar. E neste momento só se pode falar de violência doméstica. Aí fala-se com clareza, apela-se à denúncia dos agressores, declara-se rotundamente que estes dificilmente se regeneram e isentam-se as mulheres vítimas de violência doméstica do pagamento de taxas moderadoras nos hospitais. Experimente-se trocar violência doméstica por assaltos e agressões na via pública. Rapidamente se constata que essa equivalência não está prevista. A mesma pessoa que é considerada muito corajosa e empenhada quando denuncia a violência doméstica passa ao estatuto de reaccionária e populista quando denuncia a violência nos transportes públicos. É uma destas forma de violência menos importante do que a outra? Não. O que é diferente é o discurso que sobre elas existe.
Por isso aquele inconveniente «Façam-na no bairro dos ricos!» pronunciado a propósito da criação da sala de chuto no Charquinho é uma das frases que melhor as novas formas de segregação. Essas de que não se quer falar.
*PÚBLICO, 2 de Dezembro