Estou farta. Farta das fotografias dos embriões. Farta de imagens de marquesas de obstetrícia. Farta de ver as mulheres, como eu, transformadas num corpo-aquário com imagens de fetos em diversas fases de desenvolvimento. Agora para completar o album até já temos fotos de fetos elefantes, fetos cães e outros fetos mas sempre fetos no vente materno. Tanto ventre, senhores!
Estou farta das barrigas pintadas com o 'aqui mando eu' devidamente enquadradas por uns lencinhos palestinianos e outra imaginária de gosto e efeitos duvidosos. E, mais do que farta, nauseada com a conversa sobre se as mulheres devem ou não ser condenadas.###
Em Portugal, no final de 2006, eu e outros milhões de portuguesas temos o inegável direito de sermos poupadas a isto. O país mudou. Os portugueses mudaram. Felizmente já não somos um povo vestido de escuro porque os lutos eram eternos e porque o escuro, sobretudo aquele maldito cinzento, BI da nossa pobreza, ficava bem com tudo, servia para todas as estações e não dava nas vistas. Tudo - ou quase - mudou mas o retrato das mulheres não. É certo que podemos exercer todas as profissões e cargos. Quanto às profissões exercêmo-las. Quanto aos cargos vamos indo. Claro que podemos estudar o que quisermos. E não só estudamos como estudamos mais do que os homens. Mas lá no fundo, debaixo do verniz sobre a igualdade e as questões de género, mantém-se vivo aquele medo profundo e ancestral perante esse corpo excessivamente poderoso que é o das mulheres.
A gravidez é o reverso positivo e exterior duma moeda onde constam matérias mais inquietantes como a menstruação ou a menopausa. Expressões modernas como «tratamentos de compensação» - aplicadas à menopausa - ou o popular «limparam-na», usado como sinónimo da histerectomia, confirmam como se mantém latente essa concepção das mulheres como um corpo não só desequilibrado mas também conspícuo e imprevisível. Se a maternidade é aquilo que redime as mulheres dessa espécie de poder biológico excessivo, o aborto é aquilo que o reforça.
Nestas coisas não mudámos muito. Sobre a feiticeira estendemos o perfil doce da Virgem grávida. Mas a feiticeira continua lá. Sobre os corpos domesticados a regimes e ginásticas continua subjacente o espectro da megera. E ao menor pretexto esses fantasmas de sempre voltam a assombrar-nos os dias. Se se reparar a discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez é, em Portugal, uma discussão sobre o poder das mulheres. O debate em torno do aborto é exclusivamente sobre se o aborto pode ser feito 'a pedido da mulher'. Afinal a conselho ou ordem dos médicos realizam-se, em Portugal, interrupções de gravidez muito para lá das dez semanas. Sobre essas interrupções, sobre a forma como são decididas, sobre os meses que têm muitos desses fetos no momento do aborto não se fala, na medida em que esses abortos não são apresentados como o resultado da decisão da mulher mas sim como uma questão clínica.
O embróglio pantanoso para que nos arrastou o anterior referendo teve consequências gravíssimas. E uma dessas consequências foi precisamente legitimar uma espécie de neo-eugenismo: oficialmente não se aceita a interrupção da gravidez até às dez semanas «a pedido da mulher» mas fecham-se os olhos perante aquelas situações em que oficialmente a mulher tem direito a abortar, nomeadamente nos casos das malformações no feto, e em que se aborta muito, mas muito mesmo, para lá das dez semanas.
Por outro lado, a clivagem política desejada por alguns grupos, quer do Sim quer do Não, faz com que a interrupção voluntária da gravidez não se liberte duma espécie de ambiência neo-realista - operárias desempregadas e abandonadas, hemorragias, salas de partos, cadeias... ? que lhes serve da pano de fundo perfeito para as suas teses. Conviria lembrar que, desde que detectada cedo, a gravidez pode ser interrompida através de via medicamentosa e que não é tanto a pobreza que leva as mulheres a decidir ou não manter uma gravidez mas sim o facto de entenderem que essa gravidez se adequa ou não aos seus planos de vida.
Mas entre as consequências mais graves do não-resultado do anterior referendo conta-se ainda a recuperação dum argumentário sobre as mulheres que há muito julgávamos definitivamente ultrapassado. Refiro-me concretamente ao discurso vexatório sobre 'o aborto que é crime e as mulheres que não devem ser presas'. É claro que as mulheres podem e devem ser presas se cometerem crimes para os quais esteja prevista essa pena. As mulheres são iguais aos homens na condição de rés pela mesmíssima razão que são iguais aos homens na condição de juízes. Aceitar que alguém seja ou não condenado em função do seu sexo é tão atentatório da nossa dignidade quanto discutir essa possibilidade em função da raça ou da religião. Achar-se-ia normal discutir se um réu deve ser ou não condenado por ser preto ou branco? Católico ou hindu?... Certamente que não. Então como se aceita discutir nestes termos quando o objecto da discussão são as mulheres?
Por tudo isto votarei Sim a 11 de Fevereiro. Mas não considero que o caso fique aqui encerrado. Em política como na vida as responsabilidades devem ser pedidas a quem de direito. E esta situação aberrante em que nos encontramos tem responsáveis. São eles António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa. Sobrepondo-se à Assembleia da República estes dois líderes acordaram na realização dum referendo que não só não resolveu problema algum como criou vários. Algum dia quer um quer outro terão de ser confrontados com isto.
*PÚBLICO, 2 de Dezembro