Começa em Lisboa um rally ao qual os portugueses, e quase só eles, chamam Lisboa-Dakar. O resto do mundo fica-se pelo Dakar e alguns, numa reminiscência da sua designação original, ainda escrevem Paris-Dakar. Dir-me-ão que isso pouco importa. Provavelmente. Mas garanto que na imprensa internacional dificilmente se lê algo sobre o Lisboa-Dakar.
Quer seja na sua versão anterior - com partida de Paris - quer agora, de Lisboa, este rally sempre me suscitou, mais do que dúvidas, embirração. Aqueles pilotos que não são apenas pilotos mas também aventureiros, mais aquela legião de turistas, técnicos e outros profissionais que se transfiguram em viajantes causam-me uma certa impaciência. Quando o rally entra em terras africanas a impaciência cede o lugar à irritação.###
Há algo de despudorado entre o acelerar de todos aquele veículos e a pobreza imensa que rodeia o circuito do Dakar em África. Com o passar dos anos tenho-me convencido de que aquelas crianças sorridentes e adultos de ar gasto que se destacam no meio das nuvens de pó produzidas pela passagem dos carros, motas e camiões funcionam como uma espécie de fundo fotogenicamente natural para tanta potência de motor. Daí que, por exemplo, me pareça muito questionável o apoio da Santa Casa da Misericórdia a este rally. Na verdade, se em algum acontecimento desportivo é questionável a imagem dos pobres, esse acontecimento é o Dakar.
Aliás quase todos os anos o Dakar causa vítimas mortais entre os assistentes. Esses mortos devem contar-se entre os mais obscuros do mundo porque, dada a simpatia que o rally goza entre os jornalistas, esses incidentes mal são referidos, a não ser que entre as vítimas se conte algum dos pilotos ou dos técnicos.
De igual modo, pouco destaque tem merecido o facto de o rally sofrer este ano uma alteração no seu percurso : duas etapas entre a Mauritânia e o Mali serão alteradas por se temerem atentados de grupos fundamentalistas islâmicos.
Tal como do Dakar apenas se querem imagens dos pilotos que correspondam aos estereótipos dos 'senhores das dunas' ou 'leões do deserto' e não é suposto que os habitantes tenham outro papel que não o dos sorrisos de bilhete postal, também não está previsto que se fale de fundamentalismo islâmico fora da Palestina e do Iraque, onde os EUA e os países da UE têm um lugar pré-definido.
Esta visão neo-colonialista do mundo que leva muito boa gente a supor na Europa e nos EUA que tudo o que acontece, aconteceu e acontecerá no mundo nada mais é do que o resultado das nossas ocidentais acções explica que não nos interessemos pelos conflitos para os quais não existe um alinhamento ideológico pré-definido. Caso escapássemos a esta obsessão com o nosso papel muito mais importância daríamos aos actos dos fundamentalistas no Mali, na Mauritânia e também na Nigéria, em Marrocos ou na Tunísia. Muito mais se estudaria o sucedido na Argélia nos anos 90, no Irão em 1979, no Egipto desde o final dos anos 40... E constataríamos que o fundamentalismo islâmico não consegue comprometer o modo de vida do mundo ocidental. Consegue causar-nos dor e sérios problemas mas não mais do que isso. O que tem conseguido sim é comprometer o progresso, o desenvolvimento, a liberdade e a democratização em África, no Médio Oriente e em algumas regiões da Ásia. É uma parte desse mundo preso no tempo que o Dakar atravessa. Infelizmente não o veremos. Caso isso acontecesse quando os automóveis, os pilotos, os mecânicos, as peças, os litros e litros de água e os alimentos estivessem a chegar a Marrocos veríamos o outro lado dessa viagem. Aquela que é feita em sentido inverso, de noite, pelos milhares de emigrantes clandestinos e pelos membros de vários grupos fundamentalistas activos na Europa. É por causa dessas outras viagens inversas ao percurso do Dakar que os governos europeus sustentam e pactuam com regimes ditatoriais, líderes corruptos e chefes de gangs cujas contas bancárias pessoais nutrem de modo a que não nos invadam com emigrantes e controlem - Como? Onde? - os suspeitos de terrorismo.Mas nada disso cabe na fotografia-tipo do Dakar: marcas de roupa, veículos e acessórios topo de gama. Alguns dos melhores pilotos do mundo, muita areia, terrenos difíceis e cor local. Muita cor local. Realidade nenhuma.
*PÚBLICO 6 de Janeiro