Alegando-se que tal situação não será a essência da questão, mas sim a da legitimidade da sociedade para pretender punir quem decide cometer o acto, atendendo a que supostamente sempre o faria em particulares circunstâncias que justificariam o afastamento da razoabilidade da sanção penal, sou de opinião que tal alegação pode ser comum a todos os tipos legais de crime, pois que sendo fixado uma previsão de moldura penal face a um acto/omissão em abstracto, caberá em sede de apreciação dos factos a concreta decisão da existência ou não de censura e a respectiva fixação ou não, da pena e sua duração.
Evidentemente numa sociedade haverá pessoas que não entenderão as coisas do mesmo modo. É normal. Para provavelmente sobre todo e qualquer assunto. E ainda bem. Pois que, para ambas as partes estarão em causa valores que se consideram basilares para uma vida societária. Simplesmente serão incompatíveis entre si. Na maior parte de outras situações, por intermédio da discussão, da argumentação, da cedência, da negociação e outras formas sociais e políticas, consegue-se encontrar uma solução e decidir em conformidade. Havendo vários métodos para resolver situações de impasse ou de decisão difícil, parece-me que o mecanismo referendário é bastante satisfatório. Dá hipóteses a todo se pronunciarem e defenderem os seus pontos de vista, sobre questões que entendem como essenciais.
Parece-me justo e prático. Claro que tal mecanismo decisório só será plenamente legítimo se a decisão referendária não for fechada. Ou seja, que exista sempre a possibilidade de a reverter, num prazo razoável. E manter-se-ia reversível pelo menos até ao momento em que o assunto em discussão deixe de dividir de forma substancial os cidadãos ou que se encontre uma outra forma política de decisão que seja comummente aceite, ou que objecto de disputa deixe de existir ou ainda, a situação decidida se torne irreversível.
2. «Se realizada por opção da mulher?» Não.
Ao não se indicar qualquer tipo de motivação ou condicionante para a tomada deste tipo de decisão, estar-se-ia a conceder que por um simples acto voluntário, totalmente livre, alguém tivesse o poder de decidir interromper o processo já iniciado pelo qual nasce um ser humano. No entanto, a autonomia e livre arbítrio dos progenitores, a meu ver, esgotou-se no momento da concepção. Até aí, mediante os inúmeros processos existentes, ambos ou apenas um deles, tem meios que impedem a concretização de um tal resultado. E ainda que os meios preventivos falhem, sempre será uma consequência natural derivada do risco de tal acontecer. Risco esse que é previamente conhecido. Ora, o permitir-se o livre arbítrio da prática abortiva, sempre será uma forma de desresponsabilização ou fuga das consequências de um acto que, para o caso presente, apenas pode ser encarado como voluntário. Evidentemente, a concessão desse poder, além de ilegítimo, configura a aceitação de um estado de «infantilidade» do cidadão que julgo ser de se evitar, pois que os actos praticados livremente e as respectivas consequências, num cidadão que para tudo o mais se exige que seja responsável, deverão obviamente ser assumidas.
Em segundo lugar, uma gravidez não depende habitualmente apenas de um dos progenitores, não se percebendo porque a decisão do aborto deva ser tomada excluindo um dos parceiros. Em terceiro, a aceitar-se tal principio, tornaria todos os nascimentos uma consequência da vontade única da mulher. Isto é, ao permitir-se a possibilidade genérica e sem condições de não levar até ao fim a gravidez, esta ao ser levada a cabo, dependeria igualmente apenas da sua decisão, neste caso por acção negativa. Tal princípio traria evidentes e graves consequências ao nível da responsabilização dos actos do outro conjugue, o qual, mediante manifestação da vontade em contrário, poder-se-ia ver facilmente livre dos ónus e responsabilidades normais decorrentes da paternidade.
3. «Nas primeiras dez semanas»? Não.
Como expus acima, sendo a gravidez um processo continuado, não vejo razões para que se justifiquem quaisquer prazos, ou que o proposto exclua alguma das razões já apontadas. Obviamente, trata-se da fixação de um prazo que nada tem a ver com a essência da questão ou com aspectos técnicos, médicos ou científicos, mas simplesmente para que a mudança legislativa seja supostamente mais aceitável face à sensibilidade geral. A irrezoabilidade de tal prazo, constituirá a razão justificativa do seu futuro e progressivo alargamento.
4. «Em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?» Não.
Na hipótese de passar a ser um acto não punível, não se vêem razões para não possa ser praticado onde bem se entender.
Para que este assunto fique arrumado, devo desde já dizer que a minha discordância com a solução proposta neste referendo, não constitui concordância com a actual lei.
Assim, na primeira hipótese considerada: «Constituir o único meio de remover perigo de morte [da mãe]», concordo que não deva existir punição, uma vez que a lei não pode exigir o sacrifício da própria vida. O altruísmo, por muito que seja valorizado cultural e socialmente, não pode, até por definição, ser obrigatório. Acrescendo que a vida de cada um é o seu maior bem, não lhe podendo ser exigido que dela disponha em favor de terceiros e sendo-lhe legítimo actuar por todos os meios para a defender.
Já discordo da restante formulação da alínea: «ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida», pois que sobretudo nos casos indicados como «anomalia psíquica» podem os mesmos ser preenchidos factualmente com quase o que bem se entender. O que é uma discricionaridade e liberalidade disfarçada que julgo ser de evitar, por tudo o que já aqui escrevi.
As mesmas razões e conclusões, ainda de forma mais acentuada, relativamente à segunda alínea: «b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez».
«c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;», a ultima parte é óbviamente aceitável. Nas restantes situações descritas julgo que a formulação é demasiado abrangente. O que se entenderá por «doença grave ou malformação congénita»? A cegueira, a deformação óssea? Se a deformação não invialibizar a vida humana per si, entendo totalmente inaceitáveis estes critérios higienistas, os quais são contrários à dignidade humana, dependentes e fixados por critérios de terceiros, e, mais grave ainda , as razões que fundamentam tais critérios poderão ser aplicadas a todos os seres humanos.