9.1.07

A lei espanhola

Tal como ao jcd, a ideia de a despenalização do aborto implicar o direito à sua realização no SNS, mesmo que o respectivo fundamento seja apenas a vontade da mãe, não me agrada. As minhas razões, porém, não passam (pelo menos, não é esse o principal argumento) por isso me obrigar, como pagador de impostos, a suportar os respectivos custos (afinal, também suporto, com os mesmos impostos, os custos da perseguição penal ou das lesões subsequentes a abortos clandestinos). Passo então a explicar por quê, a quem tiver paciência para ler o longo texto que se segue.###
A ideia segundo a qual o aborto apenas quase só é punível em Portugal é incorrecta. A lei espanhola, por exemplo, continua a considerar punível o aborto em numerosas situações.
Apesar disso, de qualquer argumentário pró-sim faz parte a possibilidade que as (algumas) mulheres portuguesas têm de se deslocar a Badajoz e ali realizar uma interrupção voluntária da gravidez sem problemas de maior, face à benevolência da lei do país vizinho.
Ora, a lei espanhola tem sido usada com frequência por partidários de uma e outra facções para justificar o sim e o não no referendo. Uns, alegando que a Lei espanhola é igual à nossa, pelo que o problema não está na lei, mas nos médicos que a aplicam num primeiro momento, decidindo o que é ou não é uma IVG legalmente admitida.
Outros têm - e bem -, acentuado, nos últimos tempos, as diferenças entre os dois sistemas, que são fundamentalmente duas, na parte que agora nos interessa:
1) a lei espanhola admite o aborto quando este constitua um meio necessário para afastar um grave risco para saúde física ou psíquica da mãe. A lei portuguesa, nas mesmas circunstâncias, exige a existência de risco de lesão que, além de grave, seja irreversível (neste caso, sem prazo, se o aborto for o único meio para afastar o risco) ou duradoura (neste caso, apenas até às 12 semanas);
2) a lei espanhola não estabelece, em nenhum caso, qualquer prazo legal para a realização da IVG.

Acresce que a lei espanhola nunca admite o aborto fundado apenas na vontade da mãe, sendo, por esta e por outras razões, mais coerente e justa do que a portuguesa, quer na actual versão, quer na que resultará da aprovação da redacção que vai ser levada a referendo.
Os bens jurídicos em confronto na lei espanhola são, por um lado, a saúde ou a vida da mãe e, por outro, a vida humana (diferente do bem jurídico pessoa humana) do feto. Verificado o confronto, dá-se prevalência ao primeiro.
Na lei portuguesa actual, os bens jurídicos em confronto são igualmente a vida ou a saúde da mãe e a vida humana do feto (não confundir, mais uma vez, com pessoa humana). Porém, nem sempre se dá primazia à saúde da mãe (como que acontece, por exemplo, após as 12 semanas de gestação, se o aborto não for o único meio de remover o risco de lesão ou esta não for irreversível, mas apenas duradoura). A nova lei não alterará esta situação. Continuará a ser punível o aborto realizado após as 12 semanas de gravidez, mesmo que exista risco de lesão grave e duradoura, mas não irreversível, para a saúde da mãe ou se o aborto não for o único meio capaz de afastar aquele risco. Ou seja, nestes casos, o bem jurídico vida humana (do feto) prevalece e constinuará a prevalecer mesmo sobre o bem jurídico saúde da mãe.
Apesar disto, com a nova lei, até às 10 semanas de gestação, os valores em confronto serão agora a vontade da mãe (independentemente de qualquer risco para a sua saúde) e a vida humana (não pessoa humana) do feto, prevalecendo sempre a primeira, o que, no meu entender, é não só desproporcionado como manifestamente incoerente com aquilo que se passa (e continuará a passar-se) após as 12 semanas. Na verdade, onde está a coerência de, em alguns casos, a vida do feto prevalecer sobre a saúde física ou psíquica da mãe e, noutros casos, decair perante a simples vontade desta?
Se a lei fosse alterada, de modo a que o aborto apenas fosse despenalizado (para além dos demais casos já previstos) se dele resultasse risco de lesão grave (ainda que não duradoura ou irreversível) para a saúde da mãe, objecções como as do jcd ou estas, que acabei de expor, deixariam de se colocar e a coerência do nosso ordenamento jurídico, quer na perspectiva penal, quer na do direito previdencial só teria a ganhar.