No mundo ocidental, talvez seja difícil encontrar um País com uma sociedade civil tão débil e amorfa como a portuguesa. Em nenhum sítio se encontrará tanto desinteresse pela “coisa pública”, tanto virar de costas a injustiças sociais, tanto encolher de ombros perante claras violações dos direitos de cidadania, muitas vezes cometidos às escâncaras.
O termo “sociedade civil” remete-nos de imediato para a esfera do colectivo, para o interesse da comunidade. Só que isto é algo que não existe, ou então, se quisermos, existem múltiplos interesses, muitas vezes contraditórios. Existem, sempre, interesses individuais e muitas vezes, interesses de grupo ou de pequenas comunidades específicas que partilham identidades sócio-culturais. É comum os interesses de um determinado grupo serem comuns ou opostos aos de outro(s). Assim, alguns residentes da Foz contestam a construção dos molhes, numa perspectiva estética, em oposição aos pescadores da Afurada que os defendem, numa óptica de interesse económico. Os sindicatos dos professores, algumas associações de pais e porventura a maioria dos alunos estão unidos contra os exames do 6º ano, numa perspectiva de comodidade a curto prazo; a generalidade do País estará a favor, sentindo - numa base mais ou menos inconsciente e pouco formulada, face à pouca nitidez de um benefício diferido - as vantagens de amanhã haverem cidadãos com capacidade para enfrentar provas e desafios.
Para a defesa dos interesses particulares ou de grupo, é normal os cidadãos integrarem associações de diferente natureza que, numa sociedade liberal, são constituídas de forma espontânea com vista à defesa daqueles. É normal uma mesma pessoa fazer parte e colaborar em várias associações levando a que, nas sociedades modernas e parafraseando Alvin Toffler, todos os cidadãos integrem em simultâneo imensas minorias. A dinâmica associativa é, aliás, um dos principais critérios para aferir a vitalidade da sociedade civil.
Curiosamente, é nas sociedades mais liberais, onde mais se preza o individualismo, que os cidadãos mais participam em associações de diferente índole. E fazem-no muito mais por questões de egoísmo do que de altruísmo. Sabem que a ajuda que hoje prestam à comunidade poderá amanhã reverter a seu favor caso necessitem, daí que a sua actuação se mova basicamente por interesses individuais. O resultado disto é uma enorme participação cívica a todos os níveis no âmbito de instituições sobejamente aguerridas para, pelo menos nos Estados Unidos, constituirem hoje um contra-poder e elemento de fiscalização dos poderes públicos a ter em conta.
E em Portugal? Bom, associações não faltam. São milhares, espalhadas por todo o País, de todo o género e feitio. Desde os tradicionais sindicatos e associações patronais de tudo o que é sector económico, às associações ambientais e de defesa do consumidor, passando por centenas de instituições particulares de solidariedade social, milhares de associações recreativas e culturais e inúmeras corporações de bombeiros voluntários. A razão de uma tal miríade de organizações, e em especial daquelas que têm objectivos de solidariedade e de combate à exclusão social, tem a sua lógica: a solidariedade existe e é muito mais eficaz em pequenos núcleos – com a família em lugar de destaque – na pequena comunidade, onde todos se conhecem e todos conhecem quem precisa. Este mecanismo não existe a uma escala maior (uma grande cidade, região ou país) e daí a vantagem de existirem pequenas organizações, cujo raio de acção, nos grandes centros, não irá além de um bairro ou freguesia.
Mas a diferença de fundo da maioria das nossas associações face às suas congéneres em países mais avançados, reside no financiamento. Razões de natureza cultural que vêm de longe, com raízes na religião, na carga fiscal excessiva e na ainda curta vivência democrática, cimentaram a ideia de que o Estado deve não apenas estar presente na gestão dos conflitos, mas ter um papel activo em tudo o que se relacione com solidariedade, repartição do rendimento, exclusão social e em regra, toda e qualquer actividade visando o bem comum, muito embora este nunca seja rigorosamente definido. Tem-se assim que, desde o mais poderoso sindicato ou associação patronal à mais simplória e insignificante associação recreativa, investem uma fatia considerável dos seus recursos e da sua criatividade na permanente reivindicação de fatias crescentes do bolo orçamental, sempre justificáveis e de redução impensável, atendendo aos objectivos nobilíssimos que prosseguem. A comunicação social é, aliás, a primeira a incentivar este tipo de postura: qualquer programa a divulgar as actividades de um qualquer organismo filantrópico e de beneficiência, jamais dispensa a sacramental pergunta “e o Estado, apoia-vos?”, para a partir daí se encetar a habitual choradeira por um maior subsídio. No limite, o objectivo principal destas instituições deixa de ser o ambiente, a luta contra a droga ou a defesa do consumidor, passando a ser a maximização do subsídio do Estado. Chegou-se a um extremo tal, que a solidariedade deixou de ser uma causa filantrópica para se transformar de facto num negócio de milhões. As chamadas IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social) vistas numa base consolidada, têm um orçamento da ordem dos 1.500 milhões de euros, em cuja estrutura as comparticipações do Estado representam mais de 60%. Quanto baste para gerar múltiplos grupos de interesses, cujo objectivo jamais será a eliminação da pobreza ou da droga, mas a sua perpetuação, pois dela depende umbilicalmente a perenidade e desenvolvimento do negócio. De modo análogo, será impensável vermos algum dia as inúmeras corporações de bombeiros definirem uma estratégia consistente de prevenção de incêndios, dado serem estes a razão da sua existência e um fundamento irrefutável a novos peditórios de subsídios.
Os partidos políticos, por sua vez, têm um papel activíssimo no fomento destas situações de dependência, nunca desdenhando colocar boys nas organizações mais representativas (em especial nas Misericórdias e nas corporações de bombeiros), oferecendo os seus préstimos e ligações ao poder para melhor negociar as comparticipações dos poderes públicos. O aumento destes servirá, tarde ou cedo, de argumento eleitoral para o partido da situação. Assim se explica a presença do ministro em qualquer inauguração do quartel dos bombeiros (dos “vermelhos”, porque já existem os “amarelos”, ou vice-versa) na vilória mais recôndita, do pavilhão gimnodesportivo para cujo uso não chegará a haver atletas, ou a romaria que, principalmente em eleições autárquicas, os candidatos fazem a tudo quanto é clube recreativo ou casa da cultura, prometendo sempre apoios acrescidos.
Tem-se pois que, as instituições supostamente representativas da sociedade civil e de quem se esperaria a defesa de interesses de diferentes faixas da população, mais não servem do que os interesses dos seus dirigentes, transformados em instrumento da omnipresença do Estado na vida corrente dos cidadãos. O corolário de tudo isto é uma política social cara e ineficaz, o crescente alheamento dos cidadãos da esfera colectiva e o desperdício de recursos que fatalmente nos vai empobrecendo.