14.6.05

CRESCER COM O "ALVARO".

O nome, "o Álvaro", exigia sempre um tom litúrgico. O que me contaram sobre ele roçava a hagiografia: o sacrifício, a traição, a tortura, a cela de Peniche. E também a inteligência, o talento, a coragem, a entrega ao "partido" e, através do "partido", ao proletariado e à felicidade humana.

(...) Os meus pais não tinham amigos fora dele (do "partido"), coisa que de resto o "controleiro" proibia, e, se por acaso aranjavam algum, o "controleiro" mandava logo "cortar". Os livros que eles liam, e que naturalmente também li, vinham todos da lista aprovada pela ortodoxia estalinista: Gorki, claro Sholokhov, Jorgeb Amado, Panai Istrati, Steinbeck (As vinhas da ira), Dos Passos, Martin du Gard, Romain Rolland, Malraux (A condição humana), Aragon, Éluard, Neruda. E também a tralha do costume: romancistas do Azerbaijão, italianos ignotos, pacifistas (Barbusse, por exemplo), a colecção Cosmos (completa), a Vértice, propaganda sobre a guerra de Espanha ou sobre os julgamentos de Moscovo (um enorme calhamaço com um título inesquecível: A Grande Conspiração contra A Paz) e o inevitável Sidney e Beatrice Webb.

(...) Portugueses, que me lembre, poucos: Soeiro, Redol, Gomes Ferreira. Suspeito que raramente uma criança foi educada com tão má literatura e tanta mentira"

Texto (exerto) de Vasco Pulido Valente, relativamente autobiográfico e a propósito do que representou "o Álvaro".
Paz à sua alma (do "Álvaro"..... não do VPV)!

in O Público, ed. de hoje, 14.06.2005, p. 11 (link não disponível)