14.6.05

Sobre a morte de Álvaro Cunhal

Por aqui, vejo tudo muito enjoado com a morte de Álvaro Cunhal. Noutros blogues anda tudo muito combalido, e há até quem cite passagens poéticas de Jorge Amado e Pablo Neruda.

Para mim, foi mais um que faleceu; à medida que morrem, enterra-se um pouco mais o comunismo. E não vale a pena, neste momento, perder tempo a revisitar o Passado.

Pode-se dizer que o homem amava mais a URSS do que Portugal, que apoiou os Gulags, a invasão da Checoslovaquia, que ajudou a derrotar Salazar, certamente, mas para instaurar um regime ainda pior, de raíz marxista e estalinista, que apoiou nacionalizações, perseguições, que recusou ver o óbvio aquando da Queda do Muro de Berlim, que impediu a renovação no PCP, impondo sempre o «voto no ar» e promovendo os «delitos de opinião».

Não vale a pena. Porque hoje, recordar Cunhal é, para uma parte da sociedade portuguesa, importante, é uma forma de acalmar as suas próprias consciências. Canonizar Cunhal como Apóstolo da Liberdade ajuda muitos a justificar uma parte significativa das suas vidas. Porque nem todos conseguem conviver com o seu passado. É sempre mais fácil rever a história e romanceá-la. Mas não percam tempo: hoje estão nostálgicos com os «Amanhãs que Cantam»; ouvem a «Internacional» na TSF; emocionam-se a ouvir a Fátima Campos Ferreira com ar combalido na RTP. Só que comunistas como Cunhal já não há: amanhã vão todos ao Colombo ao hiper encher o carrinho de compras, pagar IVA sobre os bens e Imposto do Selo sobre os juros do cartão de crédito. Depois de amanhã, quando morrer outro, enquanto se emocionam, enfiam um ovo kinder na boca da criança, comprado no Continente na véspera, para ver se ele se cala. A mulher, no intervalo da novela, na certa pergunta ao marido quando vão a Cuba. A Havana? Não: a Varadero. Hoje, a maior parte dos comunistas são escravos do capitalismo que renegam.

É tido e sabido que Cunhal não é um Apóstolo da Liberdade, tal qual a concebemos. O modelo comunista que Cunhal defendia, obviamente, não corresponde ao que se construiu em Portugal nos anos 80 e 90. Ele contribuiu para a Queda de Salazar; mas não desejava o país em que hoje vivemos.

Fukuyama, em 1992, e perante a desagregação do Bloco de Leste, no seu livro «O Fim da História e o Último Homem» (Gradiva, 2.ª edição, 1999) apresentava, da seguinte forma, o triunfo do modelo democrático típico das sociedades ocidentais, e que de alguma forma reflecte aquilo que, embora parcialmente, ocorreu em Portugal:

Nos últimos anos «(...) tinha ocorrido por todo o mundo um consenso notável quanto à legitimidade da democracia liberal como sistema de governo, à medida que esta triunfava sobre ideologias rivais, como a monarquia hereditária, o fascismo e, mais recentemente, o comunismo. Mais do que isso, porém, eu defendia que a democracia liberal poderia constituir o "ponto terminal da evolução ideológica da humanidade" e a "forma final de governo humano" e, como tal, constituiria "o fim da história". Isto é, enquanto anteriores formas de governo eram caracterizadas por graves imperfeições e irracionalidades, que conduziram ao seu eventual colapso, a democracia liberal estava comprovadamente livre dessas contradições internas fundamentais (...)». Para F., tal não significava que estas mesmas democracias «(...) estivessem livres de injustiças ou graves problemas sociais (...)». No entanto, tal era «(...) mais o produto de uma incompleta aplicação dos princípios gémeos da liberdade e da igualdade, em que a democracia moderna se fundamenta, do que defeitos intrínsecos dos próprios princípios (...)», o que certamente não acontecia relativamente a outro tipo de regimes.

Para F., com o fim da Guerra Fria, Hegel teria derrotado Marx; o processo histórico teria, assim, chegado ao seu termo: «(...) Tanto Hegel como Marx acreditavam que a evolução das sociedades humanas não era ilimitada, mas que terminaria quando a humanidade conseguisse atingir uma forma de sociedade que satisfizesse as suas mais profundas e fundamentais aspirações. Os dois pensadores postulavam, pois, um "fim da história": para Hegel era o estado liberal, enquanto para Marx era uma sociedade comunista. Isto não significava que o ciclo natural do nascimento, vida e morte acabasse, que deixassem de ocorrer acontecimentos importantes ou que os jornais que os noticiam deixassem de ser publicados. Significava, outrossim, que não haveria mais progresso no desenvolvimento dos princípios e instituições fundamentais, porque todas as questões verdadeiramente importantes tinham sido resolvidas (...)».
F., em 1992, exacerbava o momento, induzindo o mundo a concentrar-se no aperfeiçoamento do modelo capitalista ocidental vencedor.
Eu não comungo desta visão historicista de F., e duvido mesmo que, na Europa, existam verdadeiros Estados Liberais (existirão, quanto muito, regimes mistos, liberais e socialistas); agora constato que Marx, esse, foi mesmo derrotado; de facto, os comunistas, hoje, não partem dentes; limitam-se a partir montras, a fazer manifestações, a bloquear o progresso. Outros, simplesmente, fazem pela vida. O mundo, esse, segue o seu rumo. Cada vez mais, sem referências comunistas sólidas. O comunismo hoje não passa de uma doutrina light vendida aos que não aderem aos modelos liberais e socialistas/sociais democratas que dominam o panorama político.
Cunhal, esse, precisou de morrer para voltar a ser recordado. Porque, mesmo vivo, ele já só era uma figura histórica.
Rodrigo Adão da Fonseca