Meu Caro Gabriel,
1. Li com toda a atenção o que escreveste e deixa-me dizer-te que, se fosse federalista como tu, estaria praticamente em concordância com todos os pressupostos que brilhantemente expuseste.
Só que, apesar de ser defensor da ratificação da Constituição Europeia, eu não sou federalista. Ou melhor, não defendo, oponho-me até, à criação de um Estado Federal europeu, que reproduza o modelo organizativo tradicional dos EUA ou da Alemanha, isto é, que se baseie em instituições centrais que distribuam poder pelas partes que o compõem, em termos e nas condições que os próprios órgãos federias definem.
Julgo, aliás, que a experiência comunitária demonstra a desnecessidade desse modelo. Até hoje, ele não foi utilizado, apesar de muitas das funções da soberania nacional dos Estados serem exercidas por instituições supranacionais, em nome de um interesse comum. A isto, chama-se, no limite, o federalismo funcional. Sustenta-se na ideia da partilha de soberania entre Estados, exercida por instituições onde todos tenham assento (com, obviamente, posições equivalentes à sua própria importância na comunidade internacional), que tenham uma estrutura minimalista, poderes reduzidos, e que obedeçam ao princípio da subsidiariedade nas relações com os cidadãos e as suas estruturas representativas mais próximas.
2. Apesar de muitos reveses, que reconheço, a União Europeia está bem mais próxima deste último modelo, do que do papão do super-Estado Federal com que alguns, por ignorância ou oportunismo político, tentam assustar as pessoas. Melhor prova do que afirmo não poderíamos encontrar do que a fragilidade do próprio Tratado Constitucional, desejado pelas instituições comunitárias, por praticamente todos os Chefes de Estado e dos Governos da União e, hélas!, que foi «ao charco» com um simples referendo em França. Experimentem alguns dos nossos amigos liberais, subitamente tão zelosos da soberania nacional, «referendar» as recentes medidas orçamentais do nosso governo, ou outras quaisquer, e verão a resposta.
3. Obviamente que a CE não estava isenta de erros e equívocos. Alguns deles apontaste-os no teu «post», embora, do meu ponto de vista, a maior parte dos exemplos que deste correspondam a instituições ou a órgãos que existem já na estrutura actual, com poderes e competências em tudo semelhantes aos que o novo tratado propunha. Que diferenças substanciais existem, por exemplo, entre o «Ministro dos Negócios Estrangeiros» (responsável, no novo tratado, pela PESC) e o «Alto-Representante do Conselho para a PESC», que já existe e está em funções? Ou em chamar os «bois» pelos nomes e designar os actuais «regulamentos comunitários» por «leis comunitárias» que é o que eles, de facto, são há muito? Ou que perigo pode existir em reconhecer a competência de celebrar «Tratados internacionais», no âmbito das suas competências, à União, se ela já os celebra, também, desde há muito tempo e às dúzias? Ou em chamar ao conjunto de regras de funcionamento político desta tão importante entidade que é a União, «Constituição»? Mas não são as «Constituições» as actuais «cartas de foral» dos povos, a melhor garantia do respeito das liberdades por parte de quem detém o poder? Não foi em seu nome e por elas que os liberais afrontaram o Ancien Régime?
4. É que, e desta não saio, o simples facto de um documento uniforme impor regras gerais e abstractas, claras e transparentes, onde se determinavam as competências nacionais e da União, os poderes das várias instituições e os procedimentos do seu exercício é, por si só e no actual estado em que se encontra a integração comunitária, uma verdadeira «carta de privilégio» dos cidadãos europeus. O Tratado Constitucional continha referências à «Europa Social», a políticas que, para nós liberais, devem ser do pleno exercício privado? É, sem dúvida, verdade. Mas, hás-de reconhecer, é também verdadeiro dizer-se que a «Europa Social» existe há muito, e que a atracção comunitária por essas políticas, também. O ambiente, pegando no teu exemplo, desde, pelo menos, o Acto Único Europeu, tratado que data de 1986. Não podemos esquecer-nos que a construção comunitária, como qualquer grande projecto humano, tem vindo a ser feita por liberais, socialistas, democratas-cristãos, social-democratas, etc.
Não concordamos com tudo? Pois não! Mas, como bons liberais, não somos totalitários, porque sabemos respeitar e conviver com os outros, mesmo com aqueles que nos são diferentes. Esta é a raiz da tolerância, essência do liberalismo, tão frequentemente esquecida por certa dogmática que por aí, infelizmente, vai abundando.
5. Em contrapartida, o que temos, agora que o Tratado Constitucional está morto e enterrado? A confusão generalizada, o reenvio da soberania e da decisão sobre o futuro do projecto comunitário aos «príncipes» que chefiam os Estados-membros, a uma desconfiança generalizada da população sobre o mérito da construção comunitária (que começa a ser responsabilizada pelas crises internas dos países, ou seja, pelos erros dos seus próprios governantes). Porque, não tenhas dúvidas caro Gabriel, a consequência dos referendos será precisamente a inversa da pretendida: vão ser agora, mais do que nunca, os governos nacionais a decidirem o que será o nosso futuro. É pena.