2.6.05

Gabriel, estás na berlinda!

Caro Gabriel,

Eu estava na dúvida se havia de comentar ou não este artigo. O facto de ter criticado recentemente uma crónica do Domingos Amaral (DA) estava a inibir-me de avançar para novo «bota-abaixo». Porque, em rigor, não tenho nada contra o DA (o mesmo não poderei dizer daquilo que ele por vezes escreve). Ao linkares o seu artigo para o Blasfémias, deixaste-me, porém, sem hipóteses: agora vou ter mesmo de comentar este «A privatização dos matadouros»!

Concordo que o DA colocou a questão de uma forma divertida e, de um certo prisma, a ideia essencial que pretende transmitir será, liberalmente falando, correcta: privatizam-se os matadouros, porque as vacas mugem, mas não têm capacidade reivindicativa, não se organizam em sindicatos ou corporações, nem votam. No fundo, não se estariam a tomar mais medidas liberais por receio do custo político que a sua adopção acarreta.

Há, contudo, duas ideias na crónica de DA, bem presentes na frase que cito, que importa dissecar (os itálicos são meus):

«(?) E paradoxal: então renacionaliza-se os hospitais e liberaliza-se os matadouros? Porquê? (?)».

Pois é: tudo estaria muito bem, não houvessem algumas imprecisões nos pressupostos de que DA parte; desde logo, os hospitais não foram «renacionalizados», pelo simples facto de nunca terem deixado de ser públicos. Já enjoa a forma sistemática como se tem afirmado que a passagem de S.A.?s para EPE?s se traduz numa «renacionalização» (e vice-versa). Ora, é tido e sabido que uma sociedade anónima não é necessariamente privada. A natureza pública ou privada resulta precisamente de quem for o titular do capital. Ora, os ditos «Hospitais S.A.» eram integralmente detidos pelo Estado; o seu financiamento público; a nomeação dos Conselhos de Administração efectuada pelas ARS?s sob tutela directa do Ministro da Saúde. Assim, a sua passagem para EPE?s em nada altera estas condições essenciais.

Isto conduz-nos a outra falácia que resulta do artigo de DA (embora esta não seja assim tão óbvia). DA coloca «matadouros» e «hospitais» na mesma grelha de análise, como se o Liberalismo fosse uma espécie de cartilha, assente na dicotomia «público/privado» (e em meia dúzia de ideias de raciocínio simples), ao serviço dos «privados», com o objectivo de dilacerar o Estado e o substituir na prestação dos serviços.

É certo que o Estado, numa perspectiva liberal e tal como ele hoje está organizado, é um «alvo a abater». Não haja neste plano ilusões.

Agora, quando se avaliam mercados, intervenção pública e intervenção privada, numa óptica liberal, o que se pretende salvaguardar, apenas, é a liberdade individual e a esfera de direitos dos cidadãos que dela derivam.

E isso não se reduz à dicotomia «Público/Privado». A Saúde é, neste plano, o caso mais paradigmático; a ela corresponde um mercado complexo, sendo o que mais se afasta do modelo clássico da concorrência perfeita, terreno de eleição onde a Mão Invisível funciona adequadamente: assimetrias de informação que impõem uma relação de agência, riscos de selecção adversa, acesso a cuidados não seguráveis, as especificidades associadas ao momento do pagamento dos cuidados, tornam a prestação de cuidados de saúde numa complexa tricky question, limitando as abordagens simplistas.

No séc. XXI, e no actual estádio de desenvolvimento humano, a prestação de certos cuidados de saúde pode ? embora reconheça que esta ideia não é totalmente pacífica ? ser incluída naquilo que é o núcleo central da noção liberal de Estado Mínimo.

É óbvio que o modelo actual, em concreto e à luz de uma matriz liberal, está muito longe de ser aceitável; daí que seja fundamental introduzir no presente sistema algumas das regras essenciais de funcionamento dos mercados: transparência e acesso à informação (clinical governance); liberdade de escolha do prestador, como forma de promover a concorrência; financiamento da prestação privada, quando esta cumpra as finalidades ditas públicas. Acautelando-se todos estes aspectos poder-se-ia melhorar de uma forma significativa a qualidade e a eficiência do sistema hospitalar, controlando o crescimento da despesa pública com a Saúde. Acresce ainda que uma parte significativa daquilo que é a prestação de cuidados, actualmente, poderá já não fazer sentido estar a ser financiada por via de impostos, pois só serve para aumentar a complexidade do sistema hospitalar centralizado nas mãos do Estado. Devemos defender intransigentemente estas mudanças.

Agora, promover a «privatização» da Saúde por mera desconfiança em relação ao Estado, ou até, só para se respeitar um pseudo-liberalismo de cartilha, sem perceber o que está em causa, pode servir para arrancar umas boas gargalhadas aos leitores, mas não é, certamente, para ser levado a sério na definição das Políticas Públicas. Pois tal poderia até conduzir a violações bem graves da Liberdade Individual.

Porque o liberalismo, e isso que fique bem claro a quem nos visita, está apenas preocupado com o indivíduo e com a sua liberdade. Compreende que é necessária a existência de um Estado Forte, para assegurar aquilo que o mercado não promove (Segurança, Justiça, Saúde, Ambiente, entre outros aspectos), e por serem estas áreas pressuposto da liberdade individual. Sabe, porém, que o leque de situações onde tal intervenção é necessária é limitado, sendo isso o que motiva a defesa liberal de um Estado Mínimo. Percebe, também, que para financiar o Estado são necessários impostos, mas numa proporção razoável (Hayek limita-os a um máximo de 25%), e que não coloquem o indivíduo numa posição de (quase) escravidão (a trabalhar para alimentar o «monstro»), face aos poderes públicos, como hoje ocorre. Afirma que o Estado, em qualquer caso, e na sua actuação limitada, deve respeitar a liberdade individual, razão pela qual deve conformar a sua acção de acordo com os interesses dos seus governados e cumprindo os fins previstos, evitando a tendência para a alienação, fixando-se um Bem Comum em que os cidadãos não se revêem, como será tudo o que acarrete desperdício, ou benefício injustificado de uns à custa de todos.

Mas não mais do que isso.

Por isso, quando se defende, v.g., a Liberdade de Escolha na Educação não se está a exigir uma mera «privatização» do Ensino, mas apenas a defender a possibilidade dos pais poderem optar - efectivamente, e não apenas nos moldes actuais - qual a escola que vai ensinar os seus filhos, seja ela pública ou privada.

É urgente desmistificar a ideia de que o Liberalismo está ao serviço de uns insensíveis senhores capitalistas, gordos e de bigode, que fumam charuto enquanto contam notas de quinhentos euros. O liberalismo está ao serviço do cidadão comum e da liberdade individual, sendo este o núcleo central das suas preocupações. E crónicas como a do DA não ajudam. Nada.

Rodrigo Adão da Fonseca