14.9.05

CARTAS AMERICANAS II

Meu Caro CAA,

Li, com um frémito de agonia e de horror, a nota brilhante que em boa hora apuseste à última carta que aqui te enderecei.
Escreves tu, com a ironia subtil dos sábios que a muitos terá escapado, que no teu primeiro domingo que passaste nesse sítio inóspito, foste visitar uma Universidade de segunda categoria e ficaste admirado por teres assistido a uma reunião de trabalho dos professores de direito: «ontem, Domingo, pela manhazinha, desloquei-me a uma Universidade de Rhode Island que não é das mais conhecidas. A biblioteca estava aberta. Às 12h a lotação estava a metade, isto apenas uma semana depois de ter começado o semestre. Fui tomar um café e reparei numa sala envidraçada onde cerca de 30 professores discutiam acaloradamente um tema de direito. Repito, ao meio-dia de um Domingo!!!»
Eu bem te percebo, meu malandro. É obvio que nessa terra onde a liberdade de expressão e de escolha se reduz a optar entre uma Coca-Cola e uma Pepsi, entre um Macdonalds e um Burger King, e a dizê-lo à operadora de serviço, tu tens de falar em código, por mensagens subliminares e cifradas, não vá um desses estupores da CIA apanhar-te e enfiar-te na fronteira, ou mesmo em sítio pior.
Por isso, como é evidente, quando dizes que a dita escola é de segunda, tu afirmas inequivocamente que por aí, como eu já desconfiava, não há Universidades de primeira. Essa é que é essa, porque, se não fosse assim, que necessidade tinhas tu de perder uma bela tarde de domingo, logo de domingo, numa coisa pior se tivesses uma melhor à disposição?
Também julgo ter entendido o que nos quiseste transmitir com o episódio da reunião de professores. Hesitei, ao princípio, entre estares a dar-nos conta de uma reunião conspirativa de tipos da CIA (eles estão, como é sabido, por toda a parte) a coberto de uma instituição de ensino, ou que estivesses a denunciar um grupo de «fabricantes» de diplomas da Internet, em trabalho clandestino a horas e dias impróprios para o trabalho sério e honesto. Só depois de muito meditar percebi que, no fim de contas, nos tinhas pintado um pesado quadro neo-realista de exploração do homem pelo homem, e de abuso capitalista. Como é evidente, quem trabalha ao domingo é escravo! Não tem direitos sociais, desses que a nossa Constituição ? uma das mais avançadas do mundo, como bem sabes ? consagra: o direito ao trabalho, à saúde, à segurança, à educação, ao ambiente, à celeridade da administração pública e, claro está, ao lazer!
É que, pôr trinta desgraçados a discutir um tema de direito, seja ele qual for, ao domingo, não se faz! É dose para qualquer um. Nem o grande Carlos Marx, cujo nome próprio é igual ao teu, imaginou semelhantes horrores, ele que descreveu a miséria da exploração capitalista e burguesa do operariado fabril do século XIX. Mas, insisto, estudar direito ao domingo, ainda por cima em grupo, é tortura que não se deseja ao pior inimigo.
Em Portugal, como é evidente, estudar ao domingo está fora de hipótese. Em grupo ou sozinho, o domingo é uma conquista social inalienável do trabalhador e um bom trabalhador, por definição, deve esforçar-se por reduzir o trabalho ao máximo, isto é, ao mínimo. Ao sábado, também não parece bem. Que trabalhem os patrões, essa súcia de malandros e de exploradores. Mesmo durante a semana, lá para o meio, também não convém forçar muito. Como me disse, em tempos, uma camarada brasileira, professora no Recife, por lá um horário de oito horas diárias de aulas, não passa nunca as duas ou três reais: «de tarde, está vendo», dizia-me a moça, «está muito calorzinho e não apetece "trabalhá"! Fazemos uma "praínha"! E à noite o pessoal está cansado e quer é "dórmi"». E terminou esmagadora: «Tá vendo, Rui, aqui no Brasil a gente não sabe nunca quando a vida acaba. Por isso, não convém nos chatearmos muito enquanto ela dura».
Ora, meu caro CAA, graças a esta imensa sabedoria é que somos, o Brasil e Portugal, para além de irmãos, dois países de desenvolvimento e de futuro. Aqui, o trabalhador tem direitos! Os patrões, obrigações, que é para rimar e é bem feito. Vem-te mas é embora desse covil de exploradores, antes que te apanhem à má fila e te obriguem a trabalhar todos os dias. Se puderes desviar-te para Sul do Continente, vai até ao Brasil descansar, que já mereces. Mas não passes por Guantanamo, porque ainda lá te deixam ficar. Com os tipos da CIA não se brinca.

Abraços,

P.S.: um jornal fascistóide da nossa praça publicou hoje um relatório da OCDE onde se afirma o topete de que os professores portugueses do ensino secundário leccionam, em média, menos 10 horas semanais que a generalidade dos colegas europeus. Como é evidente, hoje mesmo, no «Fórum TSF», a malta tratou do assunto com a habitual competência e ponto final! Como vês, esses americanos têm muito a aprender connosco.