Num comentário ao meu «post» «Porque sou "ordinalista"», o Carlos Novais afirma: «o Estado Nação acabou com a concorrencia de varias fontes de direito presente na civilizacao ate ao inicio do sec. 20».
Trata-se de um equívoco grave, este de acreditar que as monarquias europeias mantiveram, até à eclosão do Estado Social no século XX, a dita concorrência entre as fontes de direito, nomeadamente, a lei e o costume, representando este último um direito de geração natural e espontânea, nascido de uma hipotética plena liberdade contratual dos indivíduos.
Na verdade, a apetência do poder régio pelo domínio da lei é tão antiga quanto a própria origem das monarquias europeias. Ela foi, de resto, instrumento da centralização do poder, operado um pouco por toda a Europa a partir, pelo menos do século XIII.
Ainda no século XIV, o Condestável D. Pedro, em Portugal, escrevia: «qualquier rey, principe o comunidat no subjecto al Imperio puede faser nuevas leys, en las quales tiene faculdad o absoluto poder de anadir o amenquar como la fuere agradable». Em 1289, em resposta a reclamações do clero nacional pela ingerência régia no direito canónico e nos costumes da Igreja, diziam os procuradores de D. Dinis: «praz a ElRey, que se tolham os maaos custumes e se guardem os boõs». Um pouco mais tarde, Afonso IV estabelecia como princípio que: «ao estado dos Reys pertence, assy he tolher os usos, e costumes que som contra voontade de Deos, e da prol cumunal da terra».
Ora esta efectiva centralização régia do poder baseada no manuseamento discricionário da lei, encontrou a sua fundamentação teórica no Direito Romano, família à qual, como é sabido, pertencem o direito português e a maioria dos direitos da Europa Continental. Sucedeu que, a partir do século XI, no Ocidente, se renovou o interesse pelo estudo desse direito, feito a partir de um conjunto de códigos muito antigos («Corpus Iuris Civilis»), elaborados no século VI, na então sobejante parte oriental do Império Romano. Acontece que, nesta altura, o poder imperial é absoluto, donde o conceito de lei incluso nesse código acompanha essa visão do direito.
Assim, pode ler-se por lá que as «leges condere soli imperatori concessum est» («só ao imperador foi concedido o poder de criar leis»). Quando, a partir dos séculos XII/XIII, se opera o chamado «renascimento do direito romano justinianeu» (em homenagem a Justiniano II, que mandara fazer a dita compilação) os legistas ao serviço das monarquias europeias usam e abusam desta fórmula para combater a dita «concorrência das fontes de direito» e tornar esse poder num poder exclusivo dos seus prncípes.
Obviamente que este processo durou muito tempo. Séculos, até. Em Portugal, concluí-se na época pombalina, pela Lei de 18 de Agosto de 1769, na qual, na prática, se proíbiam todas as fontes de direito, com excepção das leis régias. Mas, se atendermos ao que diziam as Ordenações Manuelinas em relação à validade do costume local (1524, versão definitiva), ela só era admitida em função de exigentes requisitos perante a lei régia.
Por conseguinte, e em conclusão, nem houve concorrência de fontes de direito na Europa até ao século XX, muito menos foi o Estado Social que a extinguiu. O que, de facto, sucede a partir deste período foi a intromissão da lei em domínios nunca antes imaginados. Mas essas são já contas de outro rosário. De todo o modo, desenganem-se os que vêem no mundo europeu da Baixa Idade Média e do Renascimento um paraíso de liberdade individual e de ausência de centralização do poder. Estão, na verdade, redondamente equivocados.