[O meu contributo adicional para sistematizar algumas das «fugas» ao debate acesso do Café Blasfémias de quarta passada, onde partimos do tema «Eleitores e Eleitos]
No século passado, habituamo-nos a ver apresentadas as expressões Democracia e Liberdade como faces de uma mesma moeda. E bem: nas sociedades mais desenvolvidas, é consensual que sem Democracia não existe Liberdade.
Na minha humilde opinião, contudo, o conceito «Democracia» foi, nesta relação, excessivamente valorizado. Acreditou-se que a sua mera adopção nos conduziria necessariamente à Liberdade. A experiência de vivência em «Democracia» demonstrou-nos, contudo, que tal não é líquido e que, afinal, a democracia em si mesma não tem o valor social que erradamente lhe atribuímos. A democracia é apenas uma forma de governo das sociedades: a forma de governo que se impôs pelos seus méritos na generalidade dos países desenvolvidos. Mas que se limita afinal a afirmar a soberania popular, que o poder emana da generalidade dos cidadãos.
A democracia, como se disse, não vale em si mesma, ao contrário do que é a convicção geral, tem uma justificação funcional: é esse o seu valor social (Kelsen): a finalidade da democracia - e já não é pouco - é tornar efectivos os valores da liberdade e a igualdade, sendo nisto que reside o seu principal potencial.
A soberania popular, é por demais sabido, manifesta-se através do voto. Na impossibilidade prática de se construir uma sociedade governada a partir da base, é nas eleições que escolhemos os nossos representantes.
O Liberalismo, por seu lado, tem outro tipo de preocupações; seja fundado no Jusnaturalismo ou inspirado num certo Utilitarismo, defende que o indivíduo possui, pela sua própria natureza ou em busca da felicidade, uma esfera (intangível ou objectiva) de direitos, considerados fundamentais (v.g. direito à vida, à propriedade, à segurança). A salvaguarda destes direitos é tida como essencial para a afirmação individual.
Ora, numa óptica liberal, a acção do Estado, da actuação colectiva, pode condicionar de uma forma agressiva a esfera dos direitos individuais.
Por isso, mais do que saber quem nos governa, o liberalismo preocupa-se sobretudo i) com a clara definição das funções que devem estar concentradas nas mãos do Estado e; ii) como é que esse poder que é transferido para os agentes públicos (por via do «contrato social») pode/deve ser tutelado pelos cidadãos.
E por que é que os Liberais se «preocupam»? Porque compreendem que a excessiva concentração de funções nos poderes públicos, aliada à tirania da maioria, pode conduzir a um «regime democrático» que não respeite a intangibilidade da esfera individual. Pois se por um lado a democracia é a forma de governo que melhor serve o fundamento liberal - já que permite, numa sociedade que se quer baseada na igualdade, o acesso de todos à coisa pública - por outro «abre a porta» à tirania da maioria, potencialmente mais danosa quanto maior for a dimensão do Estado (Tocqueville).
O alargamento durante o séc. XX do papel do Estado, para lá da protecção dos direitos fundamentais, concentrando na acção colectiva um conjunto de funções tidas como «sociais», conduziu-nos a um modelo de sociedade onde se consagram com frequência soluções próximas das liberdades prescritivas, afastando-se ou esvaziando aquilo que deveria ser a adopção de um tipo de liberdade negativa (tal como a apresentam Stuart Mill ou Isaiah Berlim).
Existe ainda uma manifesta desproporção entre a multiplicidade de funções que se concentram na esfera Estatal e a forma minimalista como a «soberania popular» é exercida: os cidadãos, num só acto, por intermédio de um único voto, têm de escrutinar centenas de decisões com impacto directo sobre a sua esfera individual, num processo de síntese complexo e por vezes contraditório. O processo eleitoral perdeu, no actual contexto, a sua vocação contratualista, para se tornar num cálculo «para-matemático» onde buscamos desesperadamente um «mínimo denominador comum» que sustente a nossa decisão (que Popper converte num simpático eufemismo a que chama «possibilidade de se expulsar ou "despedir" governos»).
À volta do Estado gravitam, hoje, uma pluralidade de «interesses»/«interessados» que mais não fazem do que redistribuir entre si, sob a cobertura de um complexo manto legal, o poder que está concentrado na esfera pública, fora da tutela dos cidadãos.
Acresce que uma parte significativa da acção colectiva é feita sob a alçada directa do Estado, ou por seu impulso, longe daquilo que seria uma adequada actuação promovida ao nível da sociedade civil, por instituições intermédias de carácter genuinamente voluntário.
Com mãos de veludo, o Estado e os seus agentes criaram uma rede de «interesses», de subvenções, desenvolveram retóricas que justificam a(s) sua(s) própria(s) existência(s), numa teia complexa e de difícil compreensão, ainda assim perceptivelmente incoerente e incongruente com muitos dos fins que assume(m) perseguir.
O cidadão comum, no início do século XXI encara, perplexo, toda esta realidade que não compreende; verga-se perante a absolutização do Estado, sacraliza os seus dogmas, alimenta-se das suas Utopias; «instrumentaliza-se», aceita o seu papel, vê o fenómeno político como uma boa «ponte» para concretizar os seus objectivos pessoais: «joga o jogo», onde por vezes ganha, por vezes perde, recusando-se a compreender o poder que teria se optasse por fazer escolhas verdadeiramente livres [quiçá Kelsen, avant la letre (uma verdadeira blasfémia)].
Rodrigo Adão da Fonseca