[Recebi, na sequência da publicação deste post, um conjunto de mails onde se insinuava que andava a ter visões. Chegaram a perguntar-me que tipo de substâncias psicotrópicas andava a consumir; desafiaram-me a concretizar os meus devaneios, utilizando uma linguagem mais simples. Aqui vai].
O país tem vivido neste Verão Quente sob a marca da «contestação social». Contestação essa que nasce, sobretudo, na sequência de um conjunto de decisões do governo de José Sócrates que visam, diz-se, eliminar certos «direitos adquiridos» tidos como «injustificados», que o Estado em tempo concedeu, mas que agora decidiu por bem retirar. «Benefícios» ao nível da saúde, de certas prestações suplementares e em sede de reforma.
Do lado dos contestatários estão, sobretudo, os beneficiários directos que se sentem defraudados, vítimas de uma tremenda «injustiça»; do outro lado, colocam-se os partidários do «politicamente correcto» que, constrangidos, defendem a «coragem» do governo ao «retirar» todos estes benefícios apresentados agora como «injustos» e «indevidos», e que além do mais inviabilizam a construção do Estado Social, «privilégios» de «alguns» que estarão a «prejudicar» os direitos de «todos».
José Sócrates, de rosto asséptico, anuncia que vai ser implacável na eliminação dos diversos «sub-sistemas», em busca da necessária «harmonização». Porque, obviamente, a única forma de se construir um modelo social justo passa, em todo este contexto, por impor um sistema único, igual para todos.
Na minha humilde opinião, acho que a ideia de justiça tem sido algo maltratada, e utilizada em vão.
Vamos, para a nossa análise, utilizar esse pilar essencial do Modelo Social: a Reforma (a enorme cenoura, especialmente acenada sempre que o espírito dos cidadãos começa, como na Alemanha, a vacilar).
A Segurança Social e a Caixa Geral de Aposentações assentam numa base de caixa, híbrida, mas de caixa. Significa isto que as suas regras não atendem a critérios de justiça (porque cada um não recebe aquilo que é seu, nem tem acesso ao que descontou senão sob a forma de pensão, nem sequer a adesão é voluntária), mas apenas à gestão e distribuição, por critérios definidos politicamente, dos recursos que o Estado consegue obter junto dos cidadãos num determinado espaço temporal.
Durante vários anos as condições de tesouraria (muitos contribuintes, poucos beneficiários, esperança de vida próxima da idade da reforma) permitiram que fossem concedidas reformas muito superiores às que seriam atribuídas caso na fixação do seu valor o critério seguido fosse o da capitalização individual (em que cada um recebe os seus decontos actualizados pela respectiva valorização verificada ao longo da sua vida activa).
O actual sistema de reforma funciona como um jogo, assenta numa base aleatória, ao bom estilo do Casino, onde contudo todos somos compulsivamente obrigados a jogar: o jogador é o cidadão, o concessionário é o Estado.
Ao longo da vida, um cidadão, mensalmente, entrega ao Estado 33% daquilo que produz; são essas as fichas que coloca sobre o tapete verde; se morrer antes da idade da reforma, fixada por decreto, ou se enquanto reformado não chegar a viver para aquecer o banco do jardim, ganha o Casino; se a saúde e o destino permitirem que sopre as velas por muitos e longos anos, Bingo, é este o Vencedor!
A solvabilidade deste sistema resulta da conjugação de diversas variáveis, taxa de natalidade, crescimento da economia, taxa de mortalidade, esperança de vida, capacidade dos contribuintes inflacionarem as suas reformas maximizando as regras que, por inspiração legislativa e ao sabor dos tempos, vão sendo sucessivamente adaptadas. Se as «coisas» começarem a «correr mal», a população envelheceu, não morre, a economia não cresce? Mudam-se as regras: o Totoloto passa a ter 49 números, em vez dos iniciais 45, aumenta-se a idade da reforma, restringe-se o seu cálculo para que as prestações sejam menores. Tudo em nome da Justiça e da Solidariedade, é claro. E da defesa do Estado Social.
Mas onde anda a Justiça num sistema que não permite o acesso do cidadão ao capital acumulado no momento em que ele realmente precisa, fixando-se antes a idade da reforma na data que financeiramente convém ao Casino, desculpem, ao Estado? Porque é que para ter acesso ao fruto do nosso esforço, temos todos de ver planeada a nossa vida activa até à mesma idade? Numa lógica de «tudo ou nada»? Um polícia ou um professor, quem sabe melhor do que o próprio qual o momento adequado para se retirar, o Estado? Será que as histórias das nossas vidas são assim tão iguais, que tenhamos de as condicionar por Decreto? E será Solidária a norma que, perante o infortúnio da morte, permite que o sistema absorva o fruto do trabalho de toda uma vida, impedindo que o capital acumulado possa ser mobilizado em favor dos familiares do falecido, ou mesmo do próprio, antes da morte, para que este capital o ajude a morrer em paz? E tudo isto para quê? Para permitir que alguém que na lotaria da vida foi capaz de ter uma maior longevidade, possa beneficiar do prémio, de uma reforma superior à que permitiria o fruto do seu esforço? A tudo isto acresce, para mim, algo que me parece ser um factor evidente de desagregação social a prazo: a inversão das condições conduz a que, perante as dificuldades de tesouraria, os pais capitalizem nas suas reformas o esforço dos filhos, consumindo hoje aquilo que estes deveriam poder receber no futuro. Esta é uma solidariedade estranha, os pais a consumirem os recursos dos filhos...
O problema é particularmente sensível porquanto se estão a alterar as regras do jogo já a roleta está a rodar. Portugal vive hoje o ambiente denso próprio de um casino, onde os seus proprietários se aperceberam que o cliente está a ganhar, e não há dinheiro para pagar: o senhor apostou no vermelho? Azar, o vermelho afinal já não dá lugar ao prémio. Obviamente, é melhor não protestar, que os capangas do Casino têm de justificar o salário...
Justiça? Solidariedade? Já alguém viu disso na sala de um casino?
Rodrigo Adão da Fonseca
PS: Um modelo liberal não impõe idade da reforma. Não concede aos seus cidadãos benefícios que não os que resultam do fruto do seu trabalho. Permite que o cidadão possa aceder aos seus recursos quando deles necessite. Pode defender uma safety net, mas nunca com os recursos que são de cada um. A reforma numa abordagem liberal não é uma árvore das patacas, de facto, mas também não é acenada aos cidadãos como uma «cenoura». E não potencia surpresas desagradáveis.
O porquê da bolinha: Perversa, verdadeiramente marialva e blasfema esta utilização psicadélica de Rawls e a adopção da Lotaria Natural...