16.12.06

as vítimas mais certas


a corrupção ocorre na relação de agência. Esta é a relação em que uma das partes (principal) incumbe outra (agente) do desempenho de uma certa função, contra o pagamento de uma remuneração. Nesta relação, uma terceira parte - o corruptor - intervem, pagando ao agente ou concedendo-lhe outros favores, para que este actue de uma forma que é desfavorável aos interesses do principal.###

Uma empresa ou entidade pública (principal) emprega um gestor de compras (agente) que adjudica os contratos de compra, não ao fornecedor que pratica os preços mais baixos, mas a um outro que pratica preços mais elevados, só porque este lhe concedeu um certo favor ou pagamento. Um deputado (agente) vota uma lei que é contra os interesses dos cidadãos (principais da relação), mas em favor de um grupo particular de interesses que lhe ofereceu um certo benefício. Um secretário de Estado (agente) emprega um outro membro do seu partido como seu adjunto, não porque precise dele ou ele seja o candidato mais qualificado para o lugar, mas para retribuir o partido do favor que lhe fez em recomendá-lo para secretário de Estado; os principais desta relação, que são os cidadãos-contribuintes, saem prejudicados porque são eles que vão ter de pagar o vencimento do adjunto..

Para um agente que considera aceitar corromper-se, a decisão é tomada numa base racional. Ele compara os benefícios de se deixar corromper - sob a forma e o montante dos benefícios que recebe ou espera receber - com os custos esperados de o fazer, que são os custos que resultam de o seu acto ser detectado e denunciado, prejudicando a sua reputação pessoal e profissional e gerando até procedimento criminal.

A probabilidade de um acto de corrupção ser detectado e denunciado é muito diferente, porém,
consoante ele ocorra no sector privado ou no sector público. Assim, um gestor de compras que adjudica um certo contrato a um dado fornecedor, e não a outro que pratica preços mais baixos, só porque o primeiro lhe concedeu certos favores, lesando o seu patrão em um milhão de euros,
tem uma probabilidade muito diferente de o seu acto ser detectado e denunciado conforme o seu patrão seja uma empresa ou o Estado.

Se o seu patrão é um empresário em nome individual, é este que vai suportar por inteiro o custo do acto corrupto do seu empregado, no valor de um milhão de euros, conferindo ao empresário um poderoso incentivo para vigiar o seu gestor de compras, cortando-lhe todas as veleidades. Mesmo que a empresa seja propriedade de cem pessoas, cada uma terá um prejuízo de dez mil euros em resultado do acto corrupto do seu gestor de compras, conferindo aos empresários, ainda assim, um incentivo importante para nomearem um homem da sua inteira confiança para o lugar e o vigiarem de perto.

Porém, quando o patrão é o Estado, o custo do acto corrupto praticado pelo gestor de compras de uma instituição pública, no valor de um milhão de euros, é disperso por milhões de cidadãos-contribuintes. Num país de dez milhões de cidadãos, cabe a cada um deles um custo de dez cêntimos, não dando a nenhum um incentivo suficiente para vigiar de perto os actos patrimoniais daquele gestor de compras e de todos os agentes que, no sector público, actuam em seu nome.

Por isso, a corrupção é um fenómeno muito mais generalizado e intenso no sector público do que no sector privado - uma conclusão que levou o economista Ludwig von Mises a escrever que a corrupção é a consequência normal da estatização. E, na realidade, analistas ligados à Transparency International, a agência que monitoriza os índices de corrupção em cerca de 150 países do mundo, sugerem que em alguns países, a corrupção no sector público chega a representar 90% de toda a corrupção no país.

Porém, se a corrupção no sector privado é escassa em comparação com a corrupção no sector público, dentro do primeiro a actividade onde ela é mais improvável, e portanto mais rara, é no futebol. A razão é que aí o agente presumivelmete corrompido - o árbitro, alegadamente pago por um dos clubes para prejudicar o outro - tem de praticar os actos corruptos à vista de milhares, senão mesmo de milhões de pessoas, muitos delas especialistas na matérias.

Não ocorrerá facilmente a um homem, por mais corajoso que seja e por maior que seja o pagamento que lhe ofereçam, ir para um campo de futebol arbitrar de uma forma sistematicamente enviesada em favor de um clube e contra o outro, se o risco que corre é o de ser prontamente detectado, punido na sua carreira profissional e por via judicial, senão mesmo ser linchados à saída do estádio.

Porém, em certos países, às vezes instala-se a convicção generalizada de que a corrupção principal está no futebol, quando não está. A corrupção principal está onde sempre esteve - no sector público. No futebol ela é mínima, provavelmente a mais baixa de todas as áreas da vida social do país.

Porém, esta convicção generalizada da opinião pública de que a corrupção principal está no futebol possui uma razão de ser. Num país onde prevalece o individualismo do menino-mimado, os sucessos de uma pessoa ou grupo de pessoas são sempre atribuídos a mérito próprio, enquanto os insucessos são atribuídos aos outros. E como, no caso do futebol, não fica bem atribuir o insucesso próprio ao adversário, porque isso seria reconhecer mérito ao adversário, então atribui-se a uma figura neutra - e essa figura é o árbitro.

Para cada cidadão ou grupo de cidadãos, cada vez que o seu clube perde, a culpa é do árbitro que se deixou corromper pelos dirigentes do clube adversário. Como todas as jornadas há clubes a perder, todas as semanas há adeptos de clubes - e, às vezes, eles representam alguns milhões de pessoas - a afirmar que os dirigentes do clube adversário corromperam o árbitro.

A prazo, as vítimas mais certas deste processo de imputação da autoria de actos corruptores vão ser os dirigentes do clube que menos vezes perde no país - o qual é, precisamente, o clube que mais vezes é campeão.