9.12.06

o espírito público



De entre todos os vícios do carácter humano, aquele que um déspota mais aprecia entre os seus súbditos, e aquele que mais estimula entre eles, é o do egoísmo - essa forma de individualismo radical que é típico da adolescência e a que, eu próprio, anteriormente chamei individualismo do menino-mimado.###

Quando o espírito de cada cidadão é levado a preocupar-se exclusivamente com os seus interesses pessoais imediatos e o seu sentido de comunidade não ultrapassa o círculo restrito dos seus familiares e amigos, nada mais lhe dizendo respeito, o déspota conseguiu aquilo que queria e sem o que não teria conseguido sobreviver - dividir para reinar.

Neste sociedade, qualquer cidadão que decida actuar civicamente, de forma individual ou em grupo, associando-se com outros para a resolução dos problemas que lhe dizem respeito e a toda a comunidade, é visto como um perturbador da ordem pública, um extravagante que merece ser desprezado, ridicularizado e, no limite, perseguido. Pelo contrário, nesta cultura, o modelo de cidadão passa a ser aquele que não se preocupa com mais nada excepto com os seus próprios interesses pessoais - alargados, no máximo, aos seus familiares e amigos.

Quando, por virtude de uma qualquer volta da história ou empurrada pelos seus ventos, esta população que viveu sujeita durante muitos séculos a regimes despóticos passa a viver em democracia, não existe espírito público. Esta sociedade, onde as pessoas agora se podem associar livremente, vai ter associações, mas estas associações terão uma natureza predominantemente privada e serão destinadas a promover interesses predominantemente privados, revestindo um carácter que é essencialmente corporativo.

Como as pessoas não possuem uma cultura de espírito público, elas olharão para o sector público e para a sua principal instituição - o Estado -, não como uma forma de servirem o público, mas como uma forma de se servirem do público. O Estado vai servir para fornecer e pagar privilégios a este e àquele grupo que se consiga organizar, para dar e pagar empregos desnecessários a este e mais àquele, para entregar e pagar bens e serviços a certos sectores da população, ou até a toda ela - os quais, em princípio, caberia a cada um arranjar e pagar por si próprio. Quanto ao funcionamento regular e eficaz das instituições do Estado - como a justiça, a defesa, a administração pública - esse acaba por ser totalmente negligenciado porque não confere benefícios imediatos a ninguém.

Numa sociedade onde não existe espírito público a principal vítima é o sector público e a sua principal instituição - o Estado. Quando o Estado tiver sido exaurido até ao limite da sua capacidade para conferir benefícios privados, e se tiver tornado incapaz de cumprir, ainda que medianamente, qualquer uma das suas funções essenciais - como, por exemplo, a da justiça - ele deixa de merecer qualquer interesse, menos ainda qualquer respeito, por parte da população.

No meio da prosperidade relativa da esfera privada e da degradação da esfera pública permanece um enorme vazio nesta sociedade - a esfera cívica. Esta é a esfera onde os cidadãos teriam tido a oportunidade de se associar para prosseguirem fins públicos. Esta é a esfera que teria servido de mediadora entre a rapacidade dos interesses privados e a defesa dos interesses públicos. Esta é também a esfera que, no momento em que o Estado tiver de não olhar a meios para se recompor financeiramente, exaurindo os cidadãos até ao último centimo - esta é a esfera que serviria aos cidadãos de defesa contra os abusos que inevitavelmente se vão seguir.