9.12.06
uma certa cobardia
As populações que viveram durante longos séculos sob regimes autoritários e frequentemente despóticos tendem a desenvolver como um traço permanente de carácter uma certa cobardia.###
Esta cobardia reflecte uma atitude perfeitamente racional. As pessoas possuem frequentemente opiniões acerca da sua sociedade, acerca dos abusos do poder, dos privilégios de quem governa e das injustiças que cometem. Mas quando, geração após geração, o poder é exercido de forma autoritária e muitas vezes despótica, as pessoas vão aprender, com o decorrer do tempo, que entre, por um lado, denunciar os abusos, os privilégios e as injustiças do poder sofrendo as consequentes represálias e, por outro lado, ficarem caladas aguentando mais um abuso, mais um privilégio, mais uma injustiça, o melhor, em geral, é ficarem caladas.
E os déspotas vão aprendendo também que quaisquer que sejam as injustiças e os abusos que cometam, e os privilégios que se atribuam, esses abusos, essas injustiças e esses privilégios vão encontrar do outro lado uma população que é feita de cobardes.
Quando esta população, por qualquer acidente da história, passa a viver em democracia, não existe opinião pública. Perante os abusos e as injustiças do poder, aquilo que existe é um ruído de protestos feitos sempre à boca-pequena, de forma velada e nunca assumida, ocasionalmente anónima, mas nunca aberta e em público - e nunca aberta e em público porque séculos de vivência sob regimes despóticos ensinaram as pessoas que os protestos em público trazem invariavelmente consigo represálias sobre a sua vida pessoal, sobre a sua situação económica, sobre os seus familiares e amigos.
Porém, o aspecto mais saliente desta transformação democrática é de outra ordem. A partir de agora e com o decorrer do tempo, o poder vai deixar de estar nas mãos de uma aristrocracia ou oligarquia dominante, que se reproduzia no poder geração após geração, para passar a estar nas mãos dos filhos da população - essa mesma população que durante séculos teve de se acobardar permanentemente perante os abusos, as injustiças e os privilégios do poder.
Ora, não há ninguém pior para exercer o poder do que aqueles que, por força de uma tradição ancestral, possuem a cobardia como marca distintiva de carácter. Habituados durante séculos a serem abusados, e a terem de calar perante os abusos, eles encontram-se agora na posição de abusar. E é isso que eles vão fazer. O poder será agora exercido de uma forma arrogante e frequentemente cruel, os abusos serão cometidos com a legitimidade moral que é própria de quem também já os suportou e com a certeza absoluta de que a população vai aguentar e calar - uma certeza absoluta que advém do facto de eles saberem que, do outro lado da barricada, está uma população de cobardes.