13.1.07
há uma que é certa
Quando dois ou mais países, com níveis diferentes de desenvolvimento (v.g., Portugal e Alemanha) se juntam numa moeda única, as primeiras consequências são, em geral, de euforia para o país mais pobre. A inflação cai e as taxas de juro também permitindo às pessoas consumirem agora - nem que seja por recurso ao crédito abundante - aquilo que durante décadas ambicionaram adquirir mas não podiam. A credibilidade do país na esfera internacional aumenta induzindo um surto de investimento estrangeiro e dando a sensação temporária de que o país está na moda. Os salários sobem e tendem para a igualização com os dos países mais ricos.###
A factura vem ao fim de alguns anos e pode ser catastrófica. A riqueza ou o nível de vida dos cidadãos de um país depende, a prazo, de uma única causa - a produtividade dos cidadãos desse país. Um país em que cada um dos cidadãos produz, em média, mais 50% que os de outro, a prazo terá um nível de vida 50% mais elevado que o segundo.
Este diferencial de produtividade e de riqueza por cidadão - que é, na realidade, o diferencial que existe entre a Alemanha e Portugal - não foi gerado de um dia para o outro. Pelo contrário, é o resultado de um processo que decorre ao longo do tempo em que a produtividade cresce, em média, mais no primeiro (por exemplo, 3% ao ano) do que no segundo (por exemplo, 1% ao ano).
Partindo de uma situação em que certo bem custa 100 em ambos os países, ao final de um ano ele custará 97 na Alemanha (devido ao crescimento de 3% na produtividade) e 99 em Portugal
(devido ao crescimento de 1% na produtividade). Ao final de 5 anos, os custos serão, respectiva e aproximadamente, 85 na Alemanha e 95 em Portugal, uma diferença de 10%. Portugal perdeu competitividade: os alemães não mais comprarão este bem em Portugal, passando a comprá-lo na Alemanha, e os portugueses também passam a comprá-lo na Alemanha, mesmo que antes o comprassem em Portugal. As exportações portuguesas diminuem, as importações aumentam; as empresas portuguesas tendem a ir à falência, enquanto as alemãs prosperam; perdem-se postos de trabalho em Portugal, abrem-se novos postos de trabalho na Alemanha.
Se os dois países tivessem moedas diferentes (v.g., escudo e marco), o diferencial de produtividade de 10% teria sido compensado por uma desvalorização de igual montante do escudo face ao marco, retirando aos portugueses incentivo para irem comprar o bem à Alemanha (pagariam 85 pelo bem mas teriam de comprar o marco 10% mais caro, totalizando 95) e retirando aos alemães incentivo a deixar de comprá-lo em Portugal (pagariam 95 pelo bem, mas os escudos custar-lhes-iam 10% menos em marcos, totalizando 85). As empresas portuguesas iriam sobreviver e os postos de trabalho também.
Porém, com a moeda única, a forma exclusiva que as empresas portuguesas têm para sobreviver é serem capazes de gerar anualmente um aumento de produtividade semelhante ao da Alemanha (3% ao ano). Ora, acontece que a produtividade depende de numerosos e complexos factores, quase todos de natureza histórica e cultural (hábitos e disciplina de trabalho, níveis de conflitualidade nas organizações, noções de tempo, crenças e hábitos religiosos, níveis educacionais da população, ambiente político e institucional etc.) e não se conseguem mudar radicalmente nem numa geração, muito menos em meia dúzia de anos. Por isso, com a moeda única, a maior parte das empresas portuguesas expostas à concorrência internacional vai mesmo à falência (vidé os casos, em Portugal, da agricultura, pescas, texteis, vestuário, calçado, sector automóvel, turismo, etc.).
A questão do aumento da produtividade (às vezes chamada modernização, no discurso político) torna-se ainda mais crítica no sector público. Como não existe a ameaça da falência, a adesão do país à moeda única implica geralmente um aumento de salários no sector público (como no sector privado), mas nenhum incentivo ao aumento da produtividade. Não apenas a produtividade não aumenta - ou só aumenta de uma forma muito lenta - no sector público, como desse aumento de produtividade nos serviços públicos (v.g., concessões de licenças, autorizações administrativas, administração fiscal, serviços de justiça, etc.) depende, às vezes crucialmente, o aumento da produtividade no sector privado.
Quando o Estado representa, como em Portugal, cerca de metade da economia nacional, a instituição a carecer mais urgentemente de reforma ou modernização é o Estado, já que as empresas que funcionam em sectores abertos e concorrenciais ou se reformam e modernizam espontâneamente, ou então vão à falência. Por razões que tratarei noutra altura, eu não acredito numa reforma espontânea do Estado em Portugal.
Empresas privadas na falência, um Estado que não se reforma e que se perpetua a gastar dinheiro para além de toda a razoabilidade em relação àquilo que produz - esta é a receita certa para o défice orçamental. E é precisamente numa altura em que as falências aumentam e o desemprego sobe que os cidadãos são chamados a pagar cada vez mais impostos, ao mesmo tempo que olham para o sector público - e mau grado todo o eventual e genuíno empenho dos governantes -, continuam a observar em abundância toda a espécie de ineficiências, esbanjamentos, grandiosidades desnecessárias, clientelismos, privilégios e desperdícios.
As falências e o desemprego vão continuar a aumentar, não já agora somente por falta de competitividade das empresas, mas por virtude do estrangulamento fiscal. Mas não são só as empresas que vão à falência. Também vão à falência muitos cidadãos e famílias inteiras - certamente todos aqueles que, na euforia da adesão e aproveitando as baixas taxas de juro, se endividaram, e que agora ficam sem emprego e sem rendimentos para pagarem os empréstimos que contrairam.
O ambiente social vai deteriorar-se até ao dia em que os cidadãos - desempregados, vergados a um fardo fiscal insuportável e, muitos deles, literalmente falidos - se voltem contra o Estado, desencadeando um profunda crise institucional. Uma crise que, apesar de tudo, pode ser a solução porque, como demonstra a história do país nos últimos trezentos anos, o Estado português é uma instituição irreformável - excepto em situação de ruptura.
E, de todas as consequências que poderão resultar dessa crise institucional - a maior parte imprevisíveis -, há uma que é certa - o abandono da moeda única.