20.2.07

este conceito


No meu post anterior salientei as razões que, na minha opinião, foram decisivas para o sucesso económico do Estado Novo. E coloquei em primeiro lugar aquela reforma que voltou a fazer do Estado em Portugal uma pessoa de bem e a maneira como esse exemplo se propagou a toda a sociedade. A tal ponto, que o cumprimento dos contratos e, mais geralmente, dos compromissos e obrigações se tornou uma cultura no país e frequentemente uma questão de honra pessoal.###
.
Quando Salazar chegou ao poder em 1926, a situação no país era de calamidade, em resultado dos excessos democráticos da Primeira República. A inflação era galopante: entre 1914 e 1926 o custo de vida subiu vinte vezes; em 1925, o escudo valia em relação à libra 95% menos do que valia em 1910; entre 1910 e 1925, um milhão de portugueses emigraram, especialmente para o Brasil, fugindo à fome e à miséria; o orçamento do Estado, partindo de uma posição de equilíbrio em 1910, atingiu um défice de 14 mil libras-ouro em 1920; o Estado, vergado ao peso de ter de suportar as muitas clientelas políticas que viviam à sua sombra, já não conseguia obter crédito, nem interno nem externo, menos ainda assegurar a ordem e a justiça.
.
Não surpreende, por isso, que, para restaurar a ordem social e a economia, a atenção de Salazar se fixasse, em primeiro lugar, na reforma do Estado. A tal ponto, que o regime acabaria por ficar conhecido pela designação sugestiva de Estado Novo. Três anos mais tarde, ele podia escrever: "Com o equilíbrio do orçamento, a seriedade das contas, a lisura dos contratos e este conceito de o Estado dever ser sempre uma pessoa de bem, lançaram-se as bases sólidas da reorganização financeira de Portugal (...)". (Salazar, Discursos, 1929).
.
Provavelmente, nenhuma outra instituição social é tão essencial à liberdade como o Estado. O Estado é a instituição que possui o monopólio da força na sociedade e, por isso, aquela instituição que prontamente pode defender os mais fracos dos mais fortes, as pessoas honestas das pessoas desonestas, aquelas que cumprem as suas obrigações daquelas que não cumprem as suas obrigações.
.
Como notou Lord Acton, a primeira liberdade e a mãe de todas as liberdades foi a liberdade religiosa: os primeiros cristãos reclamaram a liberdade para poderem cumprir as suas obrigações para com o seu Deus. Por isso, o valor da liberdade tornou-se um valor civilizacional importante porque só através dele um homem podia cumprir as suas obrigações, primeiro para com o seu Deus, e depois para com os outros homens. É este cumprimento das suas obrigações para com os outros que define uma pessoa de bem.
.
Salazar era um crítico quer do liberalismo quer do socialismo. Mas a ideia primordial de tornar o Estado uma pessoa de bem tornou-o, nesta matéria, um defensor acérrimo daquele que é, na minha opinião, o primeiro e o mais importante princípio prático do liberalismo: respeitar os outros, o que significa, em primeiro lugar, cumprir as nossas obrigações para com eles.
.
E, sendo o Estado o árbitro e o juiz das relações sociais - a instituição cuja principal função é assegurar a justiça - a ideia de que o Estado deve ser uma pessoa de bem torna-se ainda mais importante, porque ninguém consegue ser um bom juiz quando não é capaz de dar o exemplo nas situações que ele próprio um dia terá de julgar. E, na verdade, o Estado Novo tornou-se um exemplo no cumprimento escrupuloso dos seus contratos e dos seus pagamentos - uma cultura que se difundiu por toda a sociedade.
.
A revolução de 25 de Abril de 1974 produziu uma alteração radical nesta cultura. O Estado passou então a confiscar propriedade privada - propriedade que nunca pagou ou que só pagou décadas mais tarde e somente porque foi obrigado pelos tribunais (alguns, internacionais). E, nas suas relações económicas internas tornou-se o exemplo acabado daquilo que, no tempo do Estado Novo, se designava desprezivelmente por caloteiro - na realidade, o caloteiro número um do país e o maior de todos os caloteiros.
.
E, passados trinta e três anos, quem pretender encontrar exemplo em Portugal de quem não cumpra contratos ou outras obrigações ou só as cumpra quando quer, quem não pague quando deve, mas só quando muito bem lhe apetece, o exemplo por excelência é o Estado. E esta nova cultura propagou-se a toda a sociedade. A tal ponto que uma das frases mais ouvidas em Portugal, especialmente em períodos de crise económica como este, é: "ninguém paga a ninguém". Não surpreende, o Estado português há perto de 33 anos que dá o exemplo.
.
Não cumprir as suas obrigações para com os outros, não honrar os seus compromissos - não ser, enfim, uma pessoa de bem - tornou-se a cultura dominante e uma banalidade. Assim, por exemplo, o Público traz hoje na primeira página a notícia de que os utentes do SNS não pagam as taxas moderadoras:"Há hospitais no país com milhares de taxas moderadoras por cobrar. As facturas são passadas , mas os utentes ignoram-nas. (...) 'O grau de incobrança é muito grande', afirma o porta-voz do Ministério da Saúde, acrescentando que o problema é regra, não excepção". Mas o que seria de esperar se é o Estado que dá o exemplo (e, curiosamente, com o Ministério da Saúde à frente de todos os outros)?
.
Entre um país em que o Estado, primeiro, e os cidadãos em seguida, generalizadamente cumprem os seus contratos e outros compromissos, e um outro em que - tudo o resto sendo igual - o Estado, primeiro, e os cidadãos em seguida, não cumprem generalizadamente os seus contratos e outros compromissos, não é preciso ser economista para prever que o primeiro vai prosperar, enquanto o segundo vai estagnar ou mesmo regredir. Por isso o Estado Novo prosperou.