4.4.04

ESTADO DE DIREITO E RULE OF LAW



Ao contrário do que parecem pensar os meus «camaradas» da Causa Liberal, a subversão da natureza liberal do Estado contemporâneo não se deve à generalização do princípio democrático mas à ideia de lei que vigora correntemente.

A democracia é uma simples técnica de designação dos governantes. É um processo distante da perfeição, cheio de vícios e desvios, mas é, como notou Churchill, o menos mau de todos os conhecidos, o que faz dele, pelo menos por enquanto, o melhor. Evita transferências violentas do poder, permite estabilizar os circuitos políticos, assegura a estabilidade social e faz cumprir o requisito da igualdade de todos perante a res publica. Não menos importante, para uma ética liberal, é o facto de por ela e em sua defesa, se terem batido gerações, terem morrido mulheres e homens, o que faz dela um valor político consolidado e não menosprezável. A democracia, onde existe, é asséptica. Não é nem de esquerda, nem de direita. Nem intervencionista, nem liberal. Pode ser mais ou menos escrupulosa nos modelos representativos que permite construir, mais ou menos próxima da realidade representada mas, repita-se, não passa de um método de designação dos detentores do aparelho de poder do Estado.

O mesmo já se não sucede com a lei. Na valoração contemporânea deste instrumento de soberania reside a fonte dos nossos problemas. Hayek, em vários momentos (sobretudo no tríptico «Direito, Legislação e Liberdade» e na «Constituição da Liberdade») referiu-o. Chamou a atenção para a substituição do império da vontade de um soberano individual para a vontade imperial de um soberano de natureza representativa e electiva, que são as assembleias parlamentares. Entroncou a genealogia desta perversão na recepção do direito romano imperial ou tardio (direito justinianeu, séc. VI), na Europa continental dos séculos XII e XII, o que não deixa de ser verdade, embora uma verdade incompleta. Efectivamente, os povos europeus continentais conhecem um pano de fundo jurídico que os uniformiza em alguns princípios fundamentais, decorrentes dessa tradição romanística que, por sua vez, se inspirou numa enfatização do direito imperial absolutista, bem menos do que no direito jurisprudencial dos pretores e dos juristas clássicos. Para esta visão romanística, a lei é a simples expressão da vontade dos monarcas. Não conhece limites que não sejam os ditames dessa vontade soberana. Mais tarde, na Europa continental, ela será a expressão da vontade dos monarcas, também sem limites que dela não dependam.
Quando surge o constitucionalismo que, por vezes, é confundido com o liberalismo, este inspira-se em influências distintas. Aceitando, como regras gerais e comuns a todas as suas formas, a ideia da separação de poderes e da obediência do Estado ao Direito, os constitucionalismos divergiram imenso entre si. Verdadeiramente, aqueles dois pressupostos são meramente formais, podendo dar-se-lhes, pelo menos, um sentido liberal ou um que seja socialista.
Este último funda-se no pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Ao afirmar o princípio da soberania popular, que por ser supostamente oriunda do povo será ilimitada, Rousseau afirmou um novo totalitarismo. Ao acrescentar que a soberania era indivisível, isto é, que tem de ser manipulada por um órgão que uniformemente a represente, Jean-Jacques actualizou o princípio do absolutismo da lei e do seu exercício pelas assembleias parlamentares. O moderno Estado administrativo de direito, o Rechtsstaat alemão que a França tão bem adoptou, levou a perversão aos limites, com um simulacro de separação burocrática de poderes que, na verdade, residem uniforme e totalitariamente no mesmo soberano: o «povo», representado em assembleias que «legitimam» o aparelho de poder estadual. Este, municiado dessa autoridade, faz da lei o que bem entende, conhecendo reduzidos limites impostos por alguns direitos fundamentais dos cidadãos, sem os quais as últimas aparências de Estado de direito democrático se esvairiam.

Por tudo isto, ganha redobrada importância a ideia de Rule of Law. Traduzido, frequentemente, por Estado de Direito, comete-se um erro ao fazê-lo. Na verdade, ambos encerram o princípio da submissão do Estado ao direito. Porém, é sobre a natureza deste último que divergem. Enquanto que para o Estado de direito europeu continental, o direito é a expressão da sua vontade por via da lei positiva, no Rule of Law inglês os órgãos legislativos do Estado são apenas uma das suas fontes de proveniência possíveis e nem sempre a mais importante. Os costumes ancestrais, a jurisprudência superior repetida e aceite, as praxes constitucionais, numa palavra, a common law constituem a ordem jurídica. A lei, que se lhe junta também, não a esgota nem domina, e não pode desrespeitar essas normas consuetudinárias, sob pena de ser nula. Desde logo, não poderá confrontar as praxes, usos e costumes constitucionais, tão importantes na Constituição política democrática mais antiga do mundo que, paradoxalmente, é não escrita («unwritten Constitution»).

Numa sociedade liberal, consciente dos perigos que as tentações do exercício do poder comportam, a limitação das prerrogativas daqueles que o exercem é o ponto de partida essencial. Para esse fim, a democracia é um valor essencialíssimo: permite-nos afastar, sem violência, quem se excede, prevarica ou desmerece a confiança que lhe foi confiada. Mas é insuficiente ou até prejudicial e perigosa, se ela for entendida como um cheque em branco emitido aos governantes para exercerem o poder popular soberano, sem limites ao direito que, convém não esquecer, não deverá subsumir-se à lei positiva de criação estadual. Na correcta valoração do que é o direito e do que será a lei, reside o regresso a um genuíno liberalismo.