Felizmente não tenho de votar. Felizmente, porque é sinal de que ainda não vivo num império. Quando quiser votar, emigro. Ou melhor: quando emigrar, voto.
Evidentemente, dada a supremacia e influência cultural, económica, política, militar e tecnológica (os 5 poderes) dos EUA relativamente ao resto do mundo, o que ali se passa não me indiferente. Até porque de uma forma ou de outra acaba por afectar a minha vida.
Evidentemente, dada a supremacia e influência cultural, económica, política, militar e tecnológica (os 5 poderes) dos EUA relativamente ao resto do mundo, o que ali se passa não me indiferente. Até porque de uma forma ou de outra acaba por afectar a minha vida.
Posto isto, o que dizer dos 2 principais candidatos?
George Bush tem uma veia intervencionista e estatista que me desagrada profundamente. Seja na vertente económica interna, seja na moral, seja sobretudo em matéria de política externa. E acresce que os resultados das suas políticas intervencionistas são péssimos. Em matéria de política externa, foi um desastre a preparação diplomática para a guerra do Iraque. As operações no terreno denotaram uma evidente falta de meios humanos, nomeadamente para a concretização de um imediato desarmamento. Cometeu erros grosseiros durante a ocupação, como seja a dissolução das forças militares. E demonstrou não ter um plano estratégico e operacional para o pós-guerra, insistindo em erros infantis, como seja o de realizar eleições legislativas, antes das autárquicas, manter o número de tropas a um nível baixíssimo, e o de aceitar demasiadas cedências aos poderes instalados, que por ausência das forças laicas do exército, restou apenas uma outra instituição: os religiosos.
Pelo que li dos programas do candidatos e pelo que deu para perceber da personalidade de Kerry e Bush, parece-me que, embora com nuances, os EUA manterão a sua linha política e económica seja quem for que ganhe as eleições. Kerry não é um candidato anti-Bush, ou anti-sistema. É simplesmente uma alternativa de cariz pessoal, de feitio de linguagem, de maneiras. Na essência, não creio que altere a política externa norte-americana em caso de vitória.
Mas o sistema democrático não foi desenhado para escolher a melhor candidatura, o melhor programa. Não. As eleições servem para, de forma pacífica, se poder retirar do poder quem se entende que não governa bem. Neste particular, continuo a preferir a vitória de Kerry e a derrota de Bush.
E desejo sinceramente tal, por um simples motivo: Guantanamo.
George W. Bush criou uma situação perfeitamente escandalosa. É triste demais por ter sido criada pela democracia mais antiga, mais enraízada e evoluída do mundo, colocando em causa os seus próprios fundamentos. O que ali se passa raia o inacreditável: como é possível , numa democracia criar um sub-sistema, um guetho onde a pessoa como que não existe para qualquer efeito externo, não tem direitos, não lhe é reconhecida a dignidade, ainda que de inimigo, não lhe é permitida a utilizaçao dos mecanismos legais das Convenções internacionais, ou da Constituição? Até os escravos tinham algumas regras, nem que fossem as que regulavam a propriedade. Em Guantanamo não existe nada. Nem dignidade, nem liberdade, nem defesa, nem direito. Nada de nada. O presidente Bush, num acto perfeitamente ilegal e caricatural, entendeu criar ele próprio um regime acusatório, umas semi-garantias jurídicas, uns juizes, acusadores e tribunais, sem qualquer enquadramento jurídico independente. Ele acusa, ele julga, ele "defende". É uma verdadeira afronta a quem acredita na liberdade e nos valores e práticas democráticas. E será por Guantanamo que George W. Bush será tristemente conhecido na História. Ganhe ou não as próximas eleições.
E sobre isso, infelizmente, Kerry nada disse. Teria feito toda a diferença.