5.6.05

A arte de misturar alhos com bogalhos

O João Miranda escreve abaixo um post a que chama «Salários, reformas e afins», onde afirma, e cito:

«(...) Como bem nota José Manuel Fernandes no Público de hoje, a reforma do Ministro das Finanças faz parte do pacote remunerativo dos membros da administração do Banco de Portugal e deve ser avaliado como tal. Ou seja, não se pode criticar o valor da reforma se não se tiver em conta que ela serve para compensar o reduzido valor do salário. Criticar a reforma de um ex-quadro do Banco de Portugal sem ter em conta a responsabilidade do cargo, o preço de mercado dos melhores especialistas em finanças e o valor total do pacote remunerativo auferido é, na melhor das hipóteses um erro de análise, e na pior, simples populismo (...)».

Nem sequer me vou alongar especialmente sobre este assunto. Limito-me apenas a fazer uma pergunta ao JM, ao José Manuel Fernandes e aos nossos leitores: conhecem alguma empresa privada que atribua ao seus administradores reformas vitalícias ao fim de um mandato, na ordem dos oito mil euros? O leque de empresas não se reduz a Portugal; se houver alguma empresa cotada em bolsa estrangeira que o faça, agradeço o favor de a referenciarem. Agora, se não encontrarem uma empresa que seja, então terei de concluir que este post, assim como o artigo de José Manuel Fernandes, se limitam a dar-nos «música celestial»; o argumento do «privado» só vale se tiver alguma correspondência com a realidade.

E o que se passa no sector privado, pensará quem nos lê: para quem não sabe, os pacotes remuneratórios das empresas privadas, mesmo os mais sofisticados, são construídos na base da congruência entre as diversas rúbricas: os quadros dirigentes têm boas remunerações, algumas impensáveis para o português médio, mas sempre aprovadas por representantes dos accionistas, para recompensar o seu esforço e o risco e complexidade da actividade; prémios anuais para remunerar a perfomance; planos de reforma privados; estes últimos servem para remunerar colaboradores quando, naturalmente, ponham termo ao fim de uma vida activa; a reforma é capitalizada, em função do número de anos de dedicação à empresa (não há reformas por «inteiro« ao fim de um mandato completo); a reforma não serve para remunerar nem a complexidade nem o risco da actividade. A isto se chama «transparência»,«gestão racional», «boas práticas de gestão de recursos humanos» e não «populismo». Basta ler um qualquer manual de gestão de recursos humanos.

O argumento da «concorrência» de quadros com o sector privado, de que as remunerações têm de ser vistas «numa perspectiva global» face à responsabilidade tem sido a grande falácia utilizada pelos políticos para justificar todas as regalias que recebem «under the carpet», sem sentirem problemas de consciência: e que deu origem a um «pacote» remuneratório perfeitamente atípico, nada transparente, onde o salário é mau, mas as regalias são fortíssimas. E que ninguém compreende, por seguir uma lógica completamente «avestruza»: modera-se o salário, para que os políticos possam apresentar-se como uma espécie de guardiães da coisa pública; atribuem-se, subrepticiamente, benesses, para «compor» o pacote.

Não se quer aqui «crucificar» ninguém. Mas também não vejo como pode haver volta a dar a este assunto. Quando se exige tanta transparência à sociedade civil e às empresas, com divulgação dos rendimentos de administradores (vejam-se as instrucções da CMVM a este propósito), do IRS dos cidadãos, e outras coisas que tal, não se pode ser «flexível» com os representantes de cargos públicos, tentando explicar algo que está intrinsecamente errado.

Rodrigo Adão da Fonseca