Para onde vai a América Latina (II)
«Yo quiero pedir mucho respeto. Haga preguntas sobre la situación económica de mi país. Porque usted me está llevando a una confrontación internacional, y no voy a permitir eso» foi assim que respondeu Evo Morales a um jornalista que o entrevistava para a cadeia televisiva Univisión. Mais precisamente, o jornalista Jorge Ramos perguntara a Morales se ele não considerava uma hipocrisia que tendo ele, Morales, chegado ao poder graças ao voto democrático, não peça democracia para o povo cubano. Após mais alguns considerandos sobre Cuba e os EUA, Morales levantou-se abruptamente e pôs fim à entrevista. Desta vez o jornalista optara por interrogar Evo Morales sobre o narcotráfico. ### Esta entrevista é particularmente interessante porque ela é reveladora dum dos maiores equívocos do nosso tempo: o dos esgrimistas da democracia. Os esgrimistas da democracia, sejam eles Evo Morales, Le Pen, a ETA ou os fundamentalistas islâmicos levaram ao limite a denúncia das fraquezes e imperfeições das democracias. O que de modo algum significa que estejam dispostos a aceitar as regras democráticas. Os fundamentalistas islâmicos, os zapatistas mexicanos ou o movimento aymara de Morales nunca disseram que defendiam a liberdade de expressão. Reivindicam sim a liberdade de eles mesmos se exprimirem e nada mais. Em certo sentido esta gente não mente.
«Yo quiero pedir mucho respeto. Haga preguntas sobre la situación económica de mi país. Porque usted me está llevando a una confrontación internacional, y no voy a permitir eso» foi assim que respondeu Evo Morales a um jornalista que o entrevistava para a cadeia televisiva Univisión. Mais precisamente, o jornalista Jorge Ramos perguntara a Morales se ele não considerava uma hipocrisia que tendo ele, Morales, chegado ao poder graças ao voto democrático, não peça democracia para o povo cubano. Após mais alguns considerandos sobre Cuba e os EUA, Morales levantou-se abruptamente e pôs fim à entrevista. Desta vez o jornalista optara por interrogar Evo Morales sobre o narcotráfico. ### Esta entrevista é particularmente interessante porque ela é reveladora dum dos maiores equívocos do nosso tempo: o dos esgrimistas da democracia. Os esgrimistas da democracia, sejam eles Evo Morales, Le Pen, a ETA ou os fundamentalistas islâmicos levaram ao limite a denúncia das fraquezes e imperfeições das democracias. O que de modo algum significa que estejam dispostos a aceitar as regras democráticas. Os fundamentalistas islâmicos, os zapatistas mexicanos ou o movimento aymara de Morales nunca disseram que defendiam a liberdade de expressão. Reivindicam sim a liberdade de eles mesmos se exprimirem e nada mais. Em certo sentido esta gente não mente.
Nesta matéria a capacidade de auto-engano e a vontade de ser enganado por parte da opinião pública dos países livres são muitíssimo superiores às mentiras proferidas pelos extremistas. Estes movimentos mentem muito quer quando falam dos seus adversários quer quando dão conta dos seus programas de governo. Mas raramente mentem quando falam de liberdades individuais. Pura e simplesmente não as reconhecem e como tal desenvolvem mitologias de opressão, multiplicam-se em discursos de exaltação e efabulação das perseguições de que eles são ou foram vítimas num remotíssimo passado mas não falam de liberdade enquanto direito individual. Por acaso, durante o seu exílio francês, Khomeini falou em direitos, liberdades e garantias às jornalistas cujo rosto se recusava a fitar? Passe-se os olhos pelos sites de jornais próximos da ETA como Gara e percebe-se que a liberdade não é um dos seus valores.
De certo modo Evo Morales tem razão para se manifestar irritado quando os jornalistas lhe falam de democracia. «Vendido» na Europa como uma espécie de Fidel que trocou o uniforme militar pela folclórica «chompa», Morales e o seu Movimiento al Socialismo (MAS) nem de longe nem de perto se propuseram alguma vez exercer democraticamente o poder. O que no programa do MAS se pode ler de mais tranquilizante são umas teses megalómanas acerca da Bolívia enquanto financiadora da revolução industrial europeia e posteriormente saqueada para enriquecer essa mesma Europa e os EUA. O resto é uma espécie de antropologia mística e marxismo requentado em que a sociedade sem classes deixa de ser um objectivo político para se tornar no imperativo duma ordem natural que remonta ao tempo dos incas cuja sociedade, devidamente despojada da sua estrutura imperial, surge como uma espécie de Idade de Ouro: «Adotaram um sistema comunista perfeito. (...) Evidentemente, a Civilização Inca alcançou um altíssimo grau de compreensão dos Direitos Humanos. Luzes desse Código Universal de Humanismo estão presentes na organização social que estabeleceram; na visão da propriedade como direito de todos; no comunismo que criaram; na visão socialista do trabalho; na proteção dada ao hipossuficiente; no amor à cultura, no sentido da previdência, na repulsa da escravidão; na idéia de função pública como serviço à coletividade.» - textos como este de João Baptista Herkenhoff, publicado num site brasileiro dedicado à defesa dos direitos humanos, constituíram-se como uma espécie de doutrina a que legiões de antropólogos e sociólogos procuram dar corpo e substância por esse mundo fora. Quando recentemente um dos arautos destas teses, Walter Mignolo, veio a Portugal (para inaugurar o doutoramento em Pós-Colonialismo e Cidadania Global na Universidade de Coimbra) não deixou de lembrar o linchamento e queima do alcaide Altamirano. Entrevistado para a revista «Pública», Mignolo citou esse caso não para o condenar, longe disso!, mas sim para ilustrar o que entende ser a democracia do «aillu» ou, mais precisamente, o funcionamento dum sistema de justiça indígena. Sob o palavreado das «novas formas de saber que levam a novas formas de organização económica, política, ética, epistémica, etc.» defendidas por gente como Mignolo e pelo seu anfitrião Boaventura Sousa Santos não se têm formado apenas gerações de ignorantes. As sementes do seu terrível proselitismo estão agora a dar frutos na América Latina.