4.5.06

A propósito...

OS RECENTES ACONTECIMENTOS DA BOLÍVIA LEVAM-ME A RECUPERAR DUAS CRÓNICAS QUE ESCREVI PARA O PÚBLICO NO FINAL DE JANEIRO AQUANDO DA VISITA DE EVO MORALES A ESPANHA E A FRANÇA

Para onde vai a América Latina? (I)
O destino de países como a Bolívia pode tornar-se muito semelhante ao que foi percorrido por vários países africanos: a contestação ao colonialismo levou a processos de independência que começaram por instaurar ditaduras de inspiração marxista e acabaram em oligarquias militares e tribais e não raramente ao desaparecimento do estado.###
A recente visita à Europa do novo presidente da Bolívia, Evo Morales, reproduziu aliás muitos dos velhos estereótipos com que por estas bandas se receberam durante anos líderes africanos a quem nunca confiaríamos o mais modesto posto na administração do nosso território mas que transformámos em estadistas até que a evidência dos factos revelou o grotesco de tudo isso. Como quem vê o remake dum filme, nem sequer faltaram títulos triunfais como «China vai ajudar a Bolívia de Evo Morales» (PÚBLICO, 9 de Janeiro de 2006). Não deixa de ser peculiar que o investimento da China na UE ou nos EUA nunca seja visto como ajuda mas sempre como ameaça. Mas enfim, os amanhãs que cantam mudaram-se para a América Latina. Só que agora os seus promotores já nem cantam a Internacional. Substituíram-na pelos acordes da música tradicional que, ao contrário da Internacional, nem se compromete a esconjurar a fome.
Basta fazer ressoar o estribilho da dominação colonial, juntar umas palavras contra o capitalismo e, sobretudo, apelar a uma identidade indígena. Daí em diante está aberto o caminho para todo o tipo de impunidades. Simultaneamente as ONGs e a imprensa que se habituaram a denunciar os excessos do poder político mostram uma assombrosa tolerância perante a brutalidade dos actos praticados pelos militantes dos movimentos que se reivindicam indígenas.

Como explicar, por exemplo, o silenciamento em torno das torturas e assassínios praticados no Perú e na Bolívia pelos índios aymara? Quantas notícias lemos sobre a morte de Benjamin Altamirano? Como é possível que, durante a recente viagem de Morales à Europa, ninguém o tenha confrontado com o destino deste alcaide de Ayo Ayo, torturado, linchado e queimado por membros do movimento que Morales dirige? Sabe-se que os governantes espanhóis e franceses procuraram assegurar que não serão nacionalizados os investimentos que, tanto um país como outro, têm na Bolívia, sobretudo os investimentos no sector energético. Será que alguém falou em direitos humanos? Presumo que não. Os crimes praticados ao abrigo do discurso indígena não só são desculpabilizados, omitidos e justificados como são transfigurados num facto que se insere numa ordem natural de que nós, no Ocidente, há muito fomos expulsos.

Leia-se por exemplo o que a revista Ser Indígena escreveu sobre Cirilo Robles, um cidadão peruano que, tal como Altamirano, foi executado pelos índios Aymara: «El aymara es un respetuoso en sus relaciones sociales, es reconocido como gente de trabajo, esfuerzo y previsión. Respetuoso acérrimo de la armonía cósmica y las leyes de la naturaleza. De su familia y comunidad. Su cultura es de vida. Por ello rechaza la violencia y todo aquello que signifique romper con la armonía, vital para el progreso. Cuando surge algún problema , busca evitar que se convierta en conflicto. Y cuando el conflicto surge lo erradica de raíz. Su cosmovisión, cosmogonía y cosmología está siempre presente para él y es respetada. Y es esta la razón por la cual a logrado sobrevivir durante la época inka, colonial y republicana

Note-se como a organização do estado - a República - é colocada ao nível duma dominação imperial, no caso a inca e a espanhola. Esta identificação não é de modo algum casual ? entre os movimentos indígenas do Perú, da Bolívia e do México são vários os líderes que defendem o fim do estado e o regresso às fronteiras tribais pré-Colombo. À luz da «cosmovisão, cosmogonia e cosmologia indígenas» todos os actos passam a ser justificados: «Los sucesos de Ilave [localidade peruana onde foi executado Cirilo Robles] no pueden ser vistos como la obra o accionar de una turba enardecida, sino como la decisión de un pueblo que sólo buscó erradicar de raíz a una autoridad corrupta, ladrona, que rompió con la armonía de la sociedad aymara.Cirilo Robles el alcalde muerto por linchamiento era aymara. Conocía perfectamente las costumbres y tradición aymara. Sabía lo que sucedería si su accionar al frente del municipio de Ilave, fuese contrario a los intereses de progreso de su pueblo. En su condición de sociólogo, con Maestría en Trabajo Rural, sabía perfectamente el poder real de las comunidades.»

Dezenas de sites e publicações divulgam estas teses com mais ou menos nuances de luta de classes por toda a América Latina. No Brasil sob títulos como «Cena na Bolivia Esquenta» escreveram-se textos como este sobre a morte de Altamirano: «Um assassinato insólito, um conflito cultural e uma sacudida nos movimentos sociais marcam o novo momento sócio-político na Bolívia. No dia 14 de Junho deste ano [2005], o então prefeito do pequeno municipio de Ayo Ayo, Benjamin Altamirano, foi sequestrado, torturado, assassinado, queimado e, finalmente, exibido morto em praça pública. O ato foi assumido por toda a população local, predominantemente da etnia indígena Aymara, e justificado pela tradicional idéia da justiça comunitária. A partir desses acontecimentos, diversos líderes de movimentos sociais da região foram presos preventivamente sem a existência de provas concretas. Entre essas prisões, está a de Gabriel Pinto, líder do MST boliviano, ocorrida na manhã desta quinta-feira (12/08), e que poderá desencadear uma série de ações de revolta por parte dos movimentos sociais em todo o país.» Este texto de Pablo Francischelli é sintomático da perversão do discurso pró-indígena: ao passo que as vítimas são invariavelmente apresentadas como corruptas (note-se que mesmo que o fossem jamais haveria justificação para a sua morte) para aqueles que supostamente os agrediram invoca-se a ocidentalíssima protecção da necessidade de «provas concretas». (continua)