9.10.06

O Estado do Ensino

Comentários lidos num post aí embaixo, por Gabriel Mithá Ribeiro

«Sou leitor do BLASFÉMIAS e vi com interesse o que aqui está. Só lamento que o debate ideológico sobre a educação seja, no geral, inconsequente e meramente circunstancial. Quem quiser entender os resquícios do marxismo-leninismo frequente uma escola com olhos de ver e viajará no tempo, mais ou menos até 1974-75 (obviamente com novas roupagens). Encontrará, por exemplo, a crítica e a auto-crítica de outras épocas misturada com a ditadura do proletariado (por exemplo numa imposição legislativa que obriga os professores à auto-avaliação dos alunos, pretendendo-se agora dar um passo em frente: a participação dos pais); encontrará o mais rasteiro politicamente correcto em muitos programas; encontrará a manipulação de resultados como faziam os planos quinquenais soviéticos através de uma escala de avaliação de 1 a 5, feita à medida de, numa reunião, em poucos minutos o 2 virar 3 e o aluno transitar «artificialmente»; bem como uma recusa obstinada em repor os exames em final de ciclo e a todas as disciplinas, sendo a ministra ajudada por uma opinião pública ingénua que nem entende as profundas diferenças entre os exames e as provas de aferição que anunciou; encontrará a tentativa dos engenheiros sociais em criar o «homem novo» na formação cívica, área de projecto e estudo acompanhado, o que por si só implica o maior desperdício de recursos na educação (cada turma consome o equivalente a um dia por semana com tais barbaridades que podem ocupar um terço dos horários dos professores; não fiz as contas, mas parece-me que os salários dos professores são um problema menor quando comparados com os gastos com as áreas curriculares não disciplinares); encontrará o mais puro pensamento rousseauniano misturado com o diálogo guterrista nessas «novas» áreas que se traduz, na prática, numa ideologia de combate ao conhecimento lógico e estruturado com sólidas raizes civilizacionais; encontrará um Estado tomado de assalto por um lobby chamado «ciências da educação» e que a ministra agora pretende nobilitar na figura do professor-titular; encontrará uma psicologização doentia do social (como se o institucional isolado artificialmente do social não devesse existir com regras próprias); etc, etc. Ou seja, no patamar que é preciso romper - o ideológico - vemos uma ministra híbrida que, caricaturando, conseguiu um milagroso apoio amplo da direita e da esquerda moderada para deixar o essencial na mesma ou pior, fingindo que muda: a direita (da moderada à radical) mal preparada para estas questões apoia-a talvez por causa dos «cortes orçamentais» e do «ataque aos sindicatos», e insiste em não entender que a reforma ideológica na educação está por fazer e, como as coisas caminham, será mais difícil romper no futuro do que agora pois deita ingenuamente à rua a legitimidade que agora teria com o seu apoio estéril à ministra; a esquerda moderada, no fundo, tende a fechar os olhos porque o seu território ideológico está garantido por esta ministra por muitas e boas gerações, embora cale a sua «vergonha» quanto às questões laborais. Enfim, talvez um dia as pessoas acordem e deixem de ver nos professores um bando de esquerdistas bem pagos que estão sempre contra. Eu estou. E estou porque nada do que espero ver mudado na educação há mais de uma década acontece. Vejo antes o contrário. Às vezes desespero com a indigência dos debates públicos sobre educação.»

e logo a seguir, em resposta a um outro comentário... ###

«Quanto à focagem do meu discurso na actual ministra é um defeito que nos toca a todos. Na verdade o problema está antes de se ser ministra(o). Não deveria ser admissível a quem quer que fosse ganhar eleições sem ter um programa coerente para o sector, ou seja, a legitimidade política na educação é das mais precárias porque se insiste em transformar o ministério da educação numa espécie de centro de estágio para políticos em início de carreira, como se «qualquer um servisse» desde que «faça umas coisas» ou «mostre grande voluntarismo». Ganha-se poder político na educação a partir de uma espécie de legitimidade maternal ou paternal e, depois, actua-se de acordo com os humores e, no geral, sob controlo da panelinha do «eduquês». Se a educação é uma das dimensões centrais da democracia, por um lado, ela não pode ser «ciência» (essa é uma táctica saloia de alguns que conseguiram reservar o espaço para o seu território ideológico e, assim, garantiram mercado para as suas universidades/politécnicos) e, por outro lado, é preciso deslocar a educação de «pano de fundo» do sistema político (e da comunicação social) para o palco principal, o que implicava debates sistemáticos sobre o assunto nas campanhas eleitoriais e no «tempo político comum». Daí chego à questão «Se fosse ministro...» pelo menos tinha vergonha de assumir o cargo sem antes dizer o que iria fazer: (i) à gestão das escolas (tão enquistada no sistema quanto os sindicatos, mas o actual governo numa lógica política pura e dura instrumentaliza os presidentes dos conselhos executivos contra os sindicatos, glorificando uns e diabolizando outros); (ii) ao sistema de avaliação (onde os revolucionários suprimiram, nos labirintos ministeriais, à revelia da opinião pública e do pluralismo democrático, a escala de avaliação de 0 a 20 valores e os exames em final de ciclo e, no fundo, era nesse sistema de avaliaçao que assentava a credibilidade social da escola ou, dito por outras palavras, era por aí que se selava o contrato social entre a escola e a comunidade; é preciso repôr isso, mas com inteligência, por exemplo, recorrendo a um referendo ou, no mínimo, a uma consulta individual ao corpo docente, pois isso permitiria criar uma almofada de responsabilidade social, livrando-nos das experiências dos ministros e fazendo funcionar o espaço público «a sério» em torno da educação); (iii) aos currículos (para se perceber o que é o «eduquês» basta comparar o currículo dos anos 80 com o actual, por exemplo nos 7º, 8º e 9º anos; o que implica pôr fim às áreas curriculares não disciplinares e ponderar o fim do elefante branco chamado aulas de 90 minutos; em sentido contrário atribuir mais horas às ciências, à história, à geografia, etc., estupidamente sacrificadas no altar das «ciências da educação»); (iv) à regulação de comportamentos/combate à indisciplina (aí dever-se-ia recorrer a uma legislação simples e objectiva e, mais do que isso, a um discurso político que sustentasse tais decisões; para que se entenda, a indisciplina está para o sistema educativo como o défice das contas públicas está para o estado, ou seja, podemos discordar das soluções, mas não podemos ignorar que o problema existe e é relevante, exactamente o inverso do que tem feito a actual equipa ministerial); (v) à formação dos professores (é preciso mudar as agulhas para a área científica de formação inicial dos professores; para que se entenda, é mais fácil conseguir-se uma licença sabática ou equiparção a bolseiro pelo ministério da educação para fazer teses sobre «o insucesso escolar», algo que compete ao estado, do que para um professor aprofundar conhecimentos ou fazer investigação na área científica em que se formou - biologia, história, filosofia, química, etc.; ainda sou felizmente do tempo em que os professores de história se juntavam em congressos para ouvir especialistas falar de história, quando hoje as acções de formação, à custa de uma interpretação «criativa» da interdisciplinaridade, juntam todos para se falar e aprender as teorias sibilinas de «parasitas-especialistas» que nem sequer sabem para dar aulas); (vi) ao regime de faltas dos alunos e às condições de trabalho dos directores de turma (aqui dispenso pormenores, mas é um domínio importante); (vii) discutir o número máximo de alunos por turma, tendo consciência que não se pode mudar tudo de um momento para outro, mas já é tempo de os governos assumirem compromissos objectivos escalonados no tempo (não é possível hoje trabalhar com 27/28, muito mais num país onde se fecham escolas por falta de alunos e a comunicação social é incapaz de questionar a ministra do inverso, ou seja, se o «ratio» professores alunos é assim tão favorável, não há desculpa para se continuar a meter numa sala 28 alunos). Outras questões são certamente pertinentes, mas estas são as que teriam impacto na qualidade do sistema. A questão é que não se pode mudar a conta-gotas e sem um programa previamente definido. É preciso que as pessoas entendam antes onde se vai mexer, como e com objectivos. Nada disso tem sido feito. Daí que mesmo o pouco de bom que, por acaso, foi feito desde 2005 perca todo o impacto a prazo e desmobiliza aqueles que, no terreno, impulsionariam as reformas. A actual ministra vive num castelo de cartas porque desbaratou tudo isso. Há também um debate ideológico que já referi e que deve ser assumido sem paninhos quentes, ou seja, direita e esquerda têm de assumir diferenças nos projectos educativos. Os exames são um sintoma. O problema é que ninguém assume. Isto já vai longo. Uma última palavra sobre o SOS professores. Ele só existe porque há um discurso político e social que teima em negar o óbvio: a indisciplina. É claro que com isso se contribui para o desprestígio dos professores. Mas é o que temos. A solução passa por considerar o controlo da indisciplina como um critério para avaliar a eficácia das políticas educativas, quer ao nível do ministério, quer sobretudo ao nível da gestão das escolas. Os mesmos presidentes dos conselhos executivos que se mantêm nos postos há mais de uma década e que viram crescer esse tipo de problemas e nada fizeram (em grande parte porque não têm sensibilidade de sala de aula) vão agora receber o prémio da autonomia das escolas. Como é possível dar autonomia sem antes repensar a gestão das escolas? Premeia-se os do costume. É isso que se anda a fazer com apoio da opinião pública. Como é que, numa situação dessas, eu posso condenar o SOS professores? É até possível fazer um exercício comparativo entre a indisciplina nas escolas e a violência doméstica. Tentem o exercício e verão que ele não é tão romântico ou estúpido quanto parece.»