13.10.06

Os novos inquisidores

A associação entre juízos de facto e juízos de valor foi sempre a fórmula que o poder político encontrou, em todas as épocas e em todos os lugares, para perseguir a para matar, e foi sempre uma fórmula eficaz porque a perseguição e o extermínio eram então realizados sob a cobertura da moral prevalecente.

Sócrates, Grécia Antiga: Ele ensina filosofia à juventude e corrompe-a. Ele próprio não pode ser senão um corrrupto. Destino: a morte.
Portugal, Inquisição. Ele não é católico, portanto não pode ser boa pessoa. Destino: a fogueira.
Alemanha, nazismo: Ele é judeu, portanto uma má pessoa. Destino: a câmara de gás.
União Soviética, comunismo: Ele não acredita no comunismo, portanto só poder ser um louco. Destino: hospital psiquiátrico.
Portugal, Estado Novo: Ele critica o regime, por isso é um perigoso comunista. Destino: Rua António Maria Cardoso.
Alguns países muçulmanos, séc. XXI: Ele é americano, portanto uma pessoa moralmente abominável. Destino: o inferno pela bomba.###

Foi para evadir os perigos deste dogma que John Locke insistiu no princípio da secularização do Estado e na separação estrita entre o Estado e Igreja. Porém, em Portugal, esta secularização só agora está em vias de se concretizar, mais de 300 anos depois de Locke. Não surpreende, por isso, que a atitude cultural prevalecente no país, mesmo entre a geração nascida em democracia, seja a de que não é possível, e muito menos desejável, separar juízos de facto e juízos de valor, mesmo se este dogma, permitindo aniquilar toda a oposição, torna toda a democracia inviável, para já não falar da ciência.

Na sua versão moderna, o dogma exprime-se assim: "Se tu emites uma opinião acerca dos factos da vida com a qual eu não concordo, tu não podes ser senão uma pessoa moralmente desprezível, e portanto uma má pessoa". Os seus defensores partem então daqui para a promoção do insulto, da chacota, do ostracismo social, do ódio e do assassínio de carácter, provavelmente porque, por enquanto, ainda não podem assassinar mais nada.