7.6.04

Opinion Maker exige a perfeição II

O objectivo de um processo judicial é chegar tão perto quanto possível da verdade. Mas só se pode chegar à verdade por acaso. Não existe nenhum processo infalível de se chegar à verdade e logo não existe nenhum processo que nos garanta que determinada conclusão é verdadeira.

O processo judicial é um processo conflitual. O Ministério Público desempenha o papel de acusador, os advogados de defesa representam os interesses do acusado e os tribunais inferiores decidem quem tem razão e os tribunais superiores decidem se os tribunais inferiores decidiram bem. Ninguém, mas absolutamente ninguém dentro do processo é dono da verdade.

Ora, grande parte dos leitores do Blasfémias defende que o Ministério Público, que é o acusador, deve zelar pelos interesses dos acusados. Ou seja, espera-se que o Ministério Público seja virtuoso. Só um Homem virtuoso consegue defender bem dois pontos de vista contraditórios. Não é estranho que os leitores do Blasfémias defendam sistemas baseados na virtude, porque essa é a cultura prevalecente na sociedade portuguesa. Todos sabemos que as coisas em Portugal correm mal porque os portugueses não são suficientemente virtuosos: não cumprem o seu dever, são maus cidadãos, não se interessam, são egoístas ? Mau diagnóstico. Aos maus diagnósticos seguem-se as más soluções: educação cívica nas escolas, campanhas moralistas, comunicação social moralista, obsessão pela culpa, censura pública.

Um liberal olha para o sistema judicial como um todo e está mais preocupado com o seu design do que com a actuações específicas de agentes específicos. A análise específica da acção específica de agentes específicos requer que o analista tenha acesso a toda a informação do processo, coisa que nenhum dos juízes de bancada normalmente possui.

Um liberal defenderá um processo judicial que dependa, não da virtude, mas dos vícios dos seus agentes. E por isso defenderá um processo conflitual, com uma separação nítida de papeis. Os interesses da justiça são melhor servidos se a cada uma das partes for dada a oportunidade de defender o seu ponto de vista sem quaisquer restrições. A tendência natural de cada ser humano para defender pontos de vista de forma apaixonada, mesmo contra toda a evidência, pode ser um vício, mas num processo judicial conflitual torna-se numa vantagem. É por isso normal, e por vezes até necessário, que o Ministério Público tenha uma obsessão por meter um determinado acusado na prisão. Como é óbvio, o Ministério Público, não pode defender bem ao mesmo tempo a causa da acusação e a causa da justiça. Não pode ser bom acusador e ser bom juiz. Mas pode ser um excelente acusador, se não tiver que ser acusador e juiz ao mesmo tempo.

A defesa da causa da justiça tem que ser atribuída a um juiz, cuja função é interpretar a lei e analisar as causas da defesa e da acusação. O juiz é o ponto fraco do processo porque se lhe pede que seja imparcial. Pede-se-lhe que seja virtuoso sem que ele tenha razões óbvias para o ser. É certo que, graças à separação de papéis, o juiz está livre de ter que desempenhar o papel de acusador ou o papel de advogado de defesa, e tem menos razões do que os outros para sucumbir a paixões. Mas os juízes não são infalíveis e as suas decisões devem ser encarados como meros pontos de vista. Pontos de vista informados, é certo. Muito mais bem informados que os pontos de vista da maior parte dos seus críticos, quase sempre. Mas ainda assim, pontos de vista. E por serem pontos de vista, e não a verdade absoluta, é que têm de sobreviver à análise dos tribunais superiores. No fim, chega-se a uma sentença que pode não ser a verdade absoluta, mas que tende a ser uma boa sentença porque a acusação não podia ter sido melhor, a causa da defesa não podia ter sido melhor defendida e a sentença inicial sobreviveu (ou não) aos vários testes a que foi submetida.


Os leitores do Blasfémias poderão dizer: ?Mas então, se o Ministério Público não tem por obrigação defender os interesses dos potenciais acusados, como ficam as liberdades cívicas?? E eu digo: ?Deus nos livre de um sistema em que as liberdades cívicas dependem de quem tem todos os incentivos para as violar?. As liberdades cívicas têm que ser garantidas por quem tem essa função: os advogados de defesa e o sistema de recursos. Muitos leitores do Blasfémias esquecem-se que uma acusação não é uma condenação e tem o valor que tem. Como tudo num processo judicial: é um ponto de vista. Só que é um ponto de vista que ainda não passou por todos os testes exigidos pelo sistema de justiça.

Nem as sentenças transitadas em julgado são a verdade absoluta. Primeiro, porque não é possível nunca determinar com certezas absolutas o que é verdade. E depois porque o processo judicial tem que estar calibrado para favorecer acusado. Se não estivesse calibrado a favor do acusado, e dado que o processo não é infalível, acabariam por ser condenados demasiados inocentes.

Dado que os tribunais não produzem verdades absolutas, não se podem tirar conclusões políticas das sentenças em tribunal. Ou melhor, podem, mas cada um é livre de tirar as suas. Esta é uma das virtudes das sociedades lives: não existem verdades oficiais. Cada um preserva o direito a julgar os outros do ponto de vista social e político.