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27.9.06

Oposição ao Empresariado

Já tinhamos observado na blogosfera um movimento espontâneo de oposição aos empresários e gestores cujo objectivo principal é a desresponsabilização do governo e do sector público pelo estado da economia. Esse movimento ganha nova forma com a manchete do DN de hoje onde se pode ler "Privados prejudicam imagem da economia portuguesa". É um título extraordinário tendo em conta que os privados só podem fazer aquilo que o estado os deixa fazer. Admiro por isso quem, olhando para a economia portuguesa, conseguiu separá-la em duas e atribuir determinadas responsabilidades aos privados. Este editorial de Helena Garrido talvez ajude a perceber que extraordinários raciocínios terão levado a tão estranha conclusão.
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Assim, logo no primeiro parágrafo afirma-se:
O relatório sobre competitividade do Fórum Económico Mundial é uma vergonha para os gestores e empresários portugueses e um elogio às instituições públicas. Portugal desceu do 31.º lugar para o 34.º entre 125 países fundamentalmente por causa do mau funcionamento das instituições privadas. Afinal, a fraca imagem do País deve-se em grande parte ao sector privado.

Bastante definitivo, não? (Note-se que o problema é a imagem e não os factos em si) Helena Garrido deve ter provas para o que diz. Quais serão? A resposta parece vir logo no parágrafo seguinte:

O pior indicador de Portugal é o que está relacionado com o baixo crescimento e os défices público e externo.

Pera lá, isto do défice público deve ter a ver com o estado não? E se calhar os outros dois problemas estão directamente relacionados com o défice público. Por um lado, um país com défice público insustentável costuma ter que importar bens para satisfazer o consumo público e o consumo privado por ele induzido. Por outro, um país que teve durante muito tempo um défice público insustentável acabará por cair na crise económica porque esse défice induz actividades económicas insustentáveis. Pelo que se conclui que o pior indicador de Portugal afinal é da exclusiva responsabilidade do estado.

Mas Helena Garrido pensa que não:
O défice público, um dos problemas do País que podem ser directamente atribuídos aos governos, está em vias de resolução.

Como? Importa-se de repetir? O défice real nos últimos 5 anos esteve sempre acima dos 5%, o ano passado esteve acima dos 6%, este ano vai estar nos 4.6% e só em 2009, daqui a 3 anos, o défice estará nos 3%. Ora 3% não é um défice resolvido nem coisa que se pareça. Um défice resolvido é um défice médio de 0% ao longo do ciclo económico, o que nunca aconteceu em Portugal nos últimos 30 anos nem vai acontecer nos próximos 10. Acresce que o défice está a ser resolvido não por redução de despesa mas por aumento da receita canibalizando a economia privada. Ou seja, o pior para a economia nem é o défice mas a forma como esse défice terá que ser resolvido: por aumento de impostos.

O que leva Helena Garrido a descartar as responsabilidades do estado é a extrardinária crença na compartimentação económica. Helena Garrido acredita que o peso do estado na economia não limita o desenvolvimento da economia privada. Acredita que as empresas podem investir e desenvolver-se mesmo quando o estado lhes cobra impostos para pagar políticas insustentáveis, mesmo quando o estado através de défices públicos insustentáveis induz opções empresariais erradas e mesmo quando o estado impõe todo o tipo de barreriras e regulamentos irracionais.

E Helena Garrido continua:

Se a reestruturação do Estado for conseguida, o sector privado passa a ser o grande problema do País, aquele que contribui também para o fraco crescimento e o défice externo.

É uma frase extraordinária, tendo em conta a primeira frase deste editorial: "O relatório sobre competitividade do Fórum Económico Mundial é uma vergonha para os gestores e empresários portugueses e um elogio às instituições públicas." Afinal em que ficamos? O problema principal é a reestruturação do estado, que mal começou, ou é o sector privado? Helena Garrido volta a responsabilizar os privados pelo défice externo, o que demonstra um certo desconhecimento do funcionamento da economia de mercado. Um bom empresário não tem a missão patriótica de exportar para o estrangeiro. Limita-se a adequar a sua estratégia à procura, pelo que se o estado estiver a gastar acima das suas possibilidades tenderá a satisfazer a procura interna primeiro.

Um ponto interessante deste discurso de oposição ao empresariado é a pergunta que Helena Garrido faz:
Mas muitos de nós colocamos frequentemente a questão: porque são as empresas estrangeiras em Portugal competitivas e as nacionais não o conseguem ser?

Bem, deve ser um problema genético não? Ou então o mistério tem a ver com um processo de selecção: as empresas estrangeiras que se expandem para o estrangeiro são as melhores dos respectivos países. E são também empresas que, ao contrário das nossas, não foram esmifradas pelos respectivos governos. Mas nós até temos empresas competitivas. Os bancos, por exemplo. Poderiamos até ter mais se todas as empresas nacionais tivessem os mesmos incentivos fiscais que a Auto-Europa.

Helena Garrido ainda acrescenta:
Os gestores e empresários de Portugal têm urgentemente de olhar menos para o Estado e de tratar melhor dos seus negócios. Não será fácil. As fragilidades das instituições privadas reflectem a falta de formação em áreas hoje tão importantes como a economia e as finanças e uma atitude geral que se focaliza demasiado nos problemas e pouco nas soluções.

O quê? Falta de formação? Mas então em Portugal a educação e a formação profissional não são da competência do estado? O que é que Helena Garrido sugere? Que empresas que já pagam impostos para sustentar o ineficiente Ministério da Educação devam ainda usar fundos próprios para melhorar a formação dos seus empregados?

8.12.05

Resposta a Tiago Mendes

Tiago Mendes diz que eu defendo que a a realidade é simples e redutível. Sinceramente, não percebo onde é que Tiago Mendes foi buscar a ideia de que eu defendo que a realidade é simples. Não deve ter lido os meus posts sobre economia e teoria do caos, sistemas descentralizados nem os meus posts contra a planificação do território por uma autoridade central.

Quanto ao redutível, o que eu defendo é que qualquer sistema complexo, incluindo as sociedades humanas, resultam exclusivamente das propriedades das suas partes. Ou seja, defendo que os sistemas complexos não têm causas mágicas. Para que o Tiago possa perceber melhor o que quero dizer recomendo-lhe a série O natural, o artificial e o espontâneo: I, II, III (este é do AAA), IV, V, VI,VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX.

O que o Tiago não parece perceber é que um sistema pode ser ao mesmo tempo reductível às suas componentes e complexo. O Tiago parece não gostar de construções "mecanicistas" e "algorítmicos", mas qualquer livro introdutório aos sistemas complexos e à teoria do caos explica que um sistema complexo pode resultar da aplicação algorítimica de regras simples a um estado inicial. É por isso que a simulação de sistemas complexos em computador é possível.

O Tiago parece achar que só existe ciência no sentido popperiano do termo. Depois eu é que sou simplista. Ao defender tal teoria, o Tiago exclui todas as teorias lógicas que limitam o conjunto dos universos que são possíveis. No fundo, para o Tiago o Princípio da Selecção Natural e a Praxeologia não são ciência porque nem uma nem outra são falsificáveis (ver Os limites do falsificacionismo I e Os limites do falsificacionismo II).

O Tiago Mendes parece achar que a sociedade não pode ser perfeita e totalmente interpretável à luz do conjunto de células ou bactérias. Não sei o que o Tiago quer dizer com interpretável. O que lhe posso dizer é que os processos sociais futuros serão uma consequência do ambiente externo e do estado actual de todas as células de todos os seres humanos. Quem defende o contrário acredita que existem causas mágicas que determinam os processos sociais.

Finalmente, acho curioso que o Tiago acuse os membros da Escola Austríaca de simplismo, quando Hayek foi um dos pioneiros da teoria dos fenómenos complexos, muito antes de tais fenómenos terem chegado às ciências duras. Hayek foi um dos primeiros a conceber a mente como uma ordem espontânea, a teorizar sobre sistemas complexos (link requer inscrição -- creio) e a reconhecer a importância dos limites à propagação de informação numa economia.

14.10.05

Hayek e a Lei

Hayek não é um contratualista. É um darwinista. A qualidade das leis não é garantida pela habilidade, pelo bom senso ou pela presciência das partes de cada contrato, mas pela selecção natural das formas contratuais mais adequadas à vida em sociedade.

Segue-se que:

1. a lei é uma consequência involuntária da acção humana;

2. a lei não é construída deliberadamente;

3. só as sociedades livres produzem boas leis, porque, por uma lado só estas podem explorar o espaço das leis possíveis, e por outro tradições forjadas em tirania dificilmente podem ser consideradas justas;

4. as boas leis são encontradas por um processo espontâneo de selecção natural. Não são feitas, são descobertas pela sociedade;

5. o processo de legislação democrática é inferior ao processo hayekiano porque:

5.1. reflecte relações temporárias de poder

5.2. requer presciência;

6. a codificação da lei requer um processo de descoberta das leis justas existentes nas instituições e práticas correntes porque nem toda a tradição é justa. Tradições forjadas em tirania não são justas.

5.10.04

Carta para Londres III

Caro Bruno:

1. Do facto de eu defender que o Estado é a maior ameaça à liberdade não se pode concluir que eu prefiro o modelo Somali. Defendo que o poder do estado a níveis muito inferiores aos actuais. Um estado que domina 50% da economia é uma ameaça muito maior à liberdade que um estado que domina 20% da economia, com a vantagem de que neste último caso, as funções de segurança e justiça podem ser exercidas à mesma.

2. É um facto que o estado só se mantém porque detém o monopólio da força. Ninguém paga 50% dos seus rendimentos voluntariamente.

3. Indivíduos mais livres podem viver em países em que estado tem 1/3 da dimensão dos estados actuais.

4. Qualquer sistema económico que dependa essencialmente de trocas voluntárias entre agentes e do direito de propriedade é uma economia de mercado. E tais sistemas precedem o estado moderno.

5. Não percebe o que há de especialmente espontâneo na utilização de lingotes de metal para acertar contas num regime de troca directa?

Como é que os tais lingotes passam a ter aceitação geral parcial ou totalmente independente da sua utilidade como bem de consumo?

6. O planeamento por parte do estado implica a coordenação planificada de milhões de pessoas, cada uma das quais com objectivos diferentes e meios diferentes. O planeamento da acção de um pequeno grupo envolve a coordenação de algumas pessoas com o mesmo objectivo.

7. As empresas são grupos pequenos com objectivos definidos. Não se comparam com países. A coordenação de centenas de pessoas é possível com um sistema de direcção central, a coordenação de milhões não é.

8. Nos últimos meses/anos, até os traders mais socialistas têm comprado ouro em troca de euros e dólares. Porquê? Inflação. Os lingotes não inflacionam.

9. Eu defendo que o estado deve ter o monopólio da força, mas por isso mesmo deve ser absolutamente neutro em tudo o resto e deve abandonar progressivamente a educação, a saúde e a segurança social.

10. As falhas do estado são de um tipo diferente das falhas das instituíções privadas, quer nas suas causas, quer nas suas consequências. No sector público, as virtudes privadas causam vícios públicos, no sector privado, os vícios privados causam virtudes públicas. No sector público, se as coisas correrem mal, quem sai prejudicado é toda a comunidade. No sector privado, se as coisas correrem mal, quem paga é o empreendedor.

11. As empresas funcionam bem precisamente porque os empreendedores são uns sacanas de uns egoístas. É precisamente por esse motivo que tentam desesperadamente satisfazer os clientes. O que o José Barros diz sobre os contratos são detalhes que não fazem parte das prioridades dos clientes. Se num mercado o cliente tiver uma prioridade que não é satisfeita pela oferta e se essa prioridade puder ser satisfeita de forma económica, vai aparecer um sacana de um egoísta de um empreendedor a querer lucrar com isso.

12. As empresas têm imensas preocupações sociais. Preocupam-se com a satisfação do cliente.

13. As economias crescem porque há acumulação de capital. Até a economia da URSS crescia. O importante não é o crescimento, mas que valores é que esse crescimento satisfaz. Se os valores da elite dominante, se os valores da maioria, se os valores de cada um dos indivíduos.

14. As regiões em que o Estado entrou em colapso são as mais miseráveis à face da terra porque a miséria causa o colapso dos governos.

15. O Estado Grande existe porque, apesar de ser um inimigo da Liberdade, não é um inimigo da maioria.

16. Quando diz que "É uma evidência que não existiam cidadãos livres e iguais perante a lei até surgir uma lei que lhes deu esse estatuto!" está a partir do princípio de que o estado moderno precede a lei. E que é a lei que confere estatuto. Não foi ao contrário? Não foi a lei que precedeu o estado e não foi o estatudo que se transformou em lei pela força do uso?

26.8.04

O natural, o artificial e o espontâneo XVI

Diz o autor das Cartas de Londres:

O neo-liberalismo esse sim parece radicalmente céptico quanto à capacidade do Estado para fazer algo de útil. (Veja-se os delírios do João Mirando sobre o artificial e o natural; será que ele prefere o bairro ?natural? da Musgueira ao bairro 'artificial' da Expo?)


Eu não conheço a Expo, nem a Musgueira. Nem tenho que conhecer. O Bruno parte do princípio que eu conheço porque Lisboa é a capital do Império. Como capital do Império foi crescendo descontroladamente por causa das políticas centralistas do estado. O mesmo estado que, com a lei das rendas destruiu o centro de Lisboa. E o mesmo estado que separou as zonas habitacionais, as zonas de estudo, as de lazer e as de trabalho e agora não sabe o que fazer ao trânsito. O mesmo estado que desertificou ainda mais o centro urbano de Lisboa promovendo uma nova cidade na Expo. O mesmo estado que construiu a ponte Vasco da Gama alargando ainda mais a área urbana de Lisboa. O mesmo estado que subsidiou a Expo mas se calhar não subsidiou a Musgueira. Ou que se calhar até subsidiou a Expo à custa da Musgueira.

É assim tão dificil de perceber que se o estado descurar ou destruir tudo o resto, consegue fazer maravilhas com o dinheiro público em determinados casos muito específicos?

24.8.04

O natural, o artificial e o espontâneo XV

Se o sexo não tivesse nenhum custo, o beija-flor não existiria (Matt Ridley)



20.8.04

O natural, o artificial e o espontâneo XIV

O sucesso sexual e o sucesso reprodutivo não são a mesma coisa porque os seres humanos não são como os coelhos. Os pais têm que fazer um grande investimento nos filhos durante mais de vinte anos para que estes sobrevivam e se reproduzam. Grande parte desses 20 anos são dedicados à transmissão de informação, incluindo a transmissão da língua. Em resumo: não basta dar uma queca, é preciso mudar as fraldas, ensinar a falar, dar-lhe um carro para ele ter sucesso com as gajas, meter-lhe uma cunha para ele arranjar um emprego na função pública e ainda aturar-lhe os filhos quando ele precisa. No caso das filhas, as coisas ainda são mais complicadas.

Bem a propósito, saiu hoje no Público:Os Avós Podem Ser Ter Sido o Motor da Civilização Humana

18.8.04

O natural, o artificial e o espontâneo XIII

Notas de resposta ao Jorge:

1. Eu não defendi que o que é natural é bom. O que eu defendi é que há coisas que surgem de forma espontânea e que não são de deitar fora. E que um tipo específico de interferência na sociedade tende a causar problemas maiores que aqueles que tenta resolver. Há aqui uma grande diferença.

2. A atitude racionalista pressupõe que a sociedade pode ser melhorada pela razão. Só que, vezes sem conta, os racionalistas substimam as qualidades daquilo que sobreviveu ao teste do tempo. Antes de tentarem mudar a sociedade, os racionalistas deviam primeiro descobrir como ela funciona.

3. Os processos de selecção natural/cultural seleccionam aquilo que é adequado para uma determinada circunstância. Nem sempre aquilo que é o mais adequado é o mais complexo. A simplicidade também tem as suas vantagens competitivas.

4. O Jorge tenta determinar aquilo que pode ou não pode ser bem sucedido por um processo racional. Infelizmente, aquilo que é ou não adequado a uma determinada circunstância não pode ser determinado a priori pela razão. Se isso fosse possível não existiam companhias de seguros nem bolsas de valores.

5. Sucesso sexual não implica sucesso reprodutivo. É o sucesso reprodutivo, e não o sexual, que determina que genes e que memes são transmitidos às gerações seguintes.

6. Do que o Jorge diz conclui-se que os falantes das línguas que favorecem a cooperação sobrevivem aos outros. É a existência de uma língua que favorece a cooperação, não é a cooperação intencional que faz a língua.

7. Existe uma grande diferença entre o estado moderno e um bando de caçadores-recolectores. Este é um dos grandes erros dos racionalistas. Os racionalistas tendem a ver as sociedades modernas como uma aldeia. Acontece que os esforços de milhões não podem ser coordenados da mesma forma que os esforços de dezenas. Dezenas de pessoas podem ser organizadas por uma entidade central. Mas milhões de pessoas não podem.

14.8.04

O natural, o artificial e o espontâneo XII

A diversidade linguística era considerada como uma das causas dos conflitos entre os povos. Se ao menos nos pudessemos entender. O Esperanto era a solução. Uma língua neutra que resolveria de vez o problema da comunicação entre os povos. Uma nova era de paz e harmonia entre os homens estava ali à mão de semear.

Com o tempo, o Esperanto tornou-se mais um motivo de conflitos. O mundo depressa ficou dividido entre os partidários do Esperanto, os do Ido, os do Occidental, os do Novial, os da Interlíngua, os do Volapuk, os do Ro, os do Solresol, os do Sona, os do Klingon ...

13.8.04

O natural, o artificial e o espontâneo XI

Como é que um povo que não sabe gramática inventa uma língua?

Algumas das respostas dadas:
  1. da mesma maneira que descobriram as outras coisas.
  2. a teoria do Chomsky
  3. a língua foi inventada por um gramático da idade da pedra e imitada pelos restantes
  4. a língua foi inventada pelos líderes da tribo e imitada pelos restantes
  5. a língua foi inventada por tentativa e erro<>
A solução 1 na verdade não resolve o problema porque pretende responder a um mistério com um mistério ainda maior. As soluções 2 remete a questão para a evolução biológica. As soluções 3 a 5 pressupõem a invenção deliberada e consciente da língua.

A invenção consciente e deliberada da língua é improvável por várias razões:
  1. uma língua tem uma estrutura coerente que não se explica pela mera invenção de uma palavra de cada vez;
  2. o inventor de uma língua tem que ter conhecimentos avançados de gramática, conhecimentos esses que nós sabemos que os nossos antepassados não tinham;
  3. o inventor de uma língua precisa de manipular símbolos através da linguagem que ainda não foi inventada;
  4. as línguas mudaram ao longo de milhares de anos e muito lentamente.
As soluções propostas pelos cientistas para resolver a este problema são soluções que conjugam mecanismos de evolução biológica com mecanismos de evolução cultural. Alguns autores tendem a preferir soluções baseadas predominantemente na evolução biológica e outros soluções baseadas predominantemente na evolução cultural.

As ideias que nos ajudam a explicar a origem das línguas são ideias como as seguintes:
  • a língua confere uma vantagem àqueles que a usam, logo qualquer mutação genética que permita melhorar a forma como as pessoas comunicam é favorecida. Aqueles que a possuem sobrevivem e multiplicam-se muito mais do que os outros;

  • Grupos que desenvolvem os seus próprios dialectos são menos vulneráveis a free riders porque os seus membros reconhecem os estranhos mais facilmente. Os grupos que não desenvolvem o seu próprio dialecto tendem a desaparecer;

  • a língua confere uma vantagem àqueles que a usam, logo qualquer nova regra gramatical que permita melhorar a forma como as pessoas comunicam é favorecida. Aqueles que a possuem sobrevivem e multiplicam-se muito mais do que os outros;
  • aqueles que falam de forma mais clara são mais apreciados pelos restantes e têm mais sucesso reprodutivo. Transmitem os seus genes e a sua forma de falar a mais pessoas;
  • Os sons e as palavras que favorecem a fiabilidade das mensagens sobrevivem e multiplicam-se.
Nenhuma destas soluções envolve desígnios humanos. Os processos evolucionários são cegos e as pessoas envolvidas não têm consciência de que estão a participar neles.

12.8.04

O natural, o artificial e o espontâneo X

A Biblioteca de Babel

Dessas premissas incontrovertíveis deduziu que a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpelações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.(JLB)


Se o Gerador de Texto Aleatório produzir texto consecutivamente acabará por produzir as obras de Shakespeare. Quer isso dizer que o Gerador de Texto Aleatório tem talento literário?

Um dos nossos antepassados torna-se num criador da língua só porque, sem qualquer intenção, deixou de dizer wed e passou a dizer weda?

O natural, o artificial e o espontâneo IX

A evolução das línguas naturais



O português evoluiu a partir do latim que por sua vez, juntamente com o grego, o sânscrito e muitas outras línguas europeias e asiáticas, evoluiram a partir do proto-indo-europeu que terá sido falado há 6000 mil anos lá para os lados do Mar Negro. As línguas da família do indo-europeu pertencem à superfamília das línguas euroasiáticas. Todas as línguas actuais podem ser agrupadas, pelas suas afinidades, em 12 super-famílias (ver mapa). Estas superfamílias evoluíram provavelmente a partir de uma única língua incial.

As líguas evoluíram ao longo de mais de 10 mil ou 30 mil anos. Durante a maior parte deste tempo não existiam estados e os falante eram analfabetos e não sabiam nada de gramática.

Pergunta do dia: como é que um povo que não sabe gramática, nem tem sequer a noção do que é um verbo, inventa uma língua?

11.8.04

O natural, o artificial e o espontâneo VIII

Hoje em dia, quando uma pessoa declara que não acredita na teoria da evolução de Darwin é considerada ignorante e atrasada. O caso do Kansas gerou há uns anos uma onda de contestação universal. E, como de costume, os americanos foram declarados uma cambada de fanáticos. Já para não falar nos pobres habitantes do Kansas.

E no entanto, as pessoas continuam a ser consideradas cultas quando afirmam que a lei é uma criação do estado, ou quando dizem que não existem diferenças significativas entre o Esperanto e uma língua natural ou quando dizem que o dinheiro é artificial ou quando troçam da mão invisível.

O processo de evolução por selecção natural é um processo que é capaz de produzir a imensa diversidade da vida biológica sem que ninguém planeie ou dirija processo. O sistema circulatório, a digestão, a fotosíntese, o Ciclo de Krebs, o cérebro, as formas de locomoção, o esqueleto, os vírus, as vias metabólicas, as enzimas, a floresta amazónica são o resultado de um processo que ninguém controla e que ninguém inventou.

É por isso extraordinário que os racionalistas tendam a acreditar que o milagre da evolução biológica é possível ao mesmo tempo que tendem a acreditar que os fenómenos espontâneos não têm qualquer papel social e que a sociedade deve ser organizada, dirigida e controlada de forma racional por uma autoridade central.

E no entanto, as línguas naturais, as leis, o dinheiro, a cultura e mesmo a democracia foram criados por processos que são mais parecidos com a evolução natural do que com a criação racional.

Ninguém inventou o português, ninguém definiu a sua gramática, ninguém criou o seu vocabolário como aconteceu com o esperanto. O protuguês é o resultado de milhares de anos de selecção pelos falantes do vocabulário, da gramática e da pronúncia. Mas nenhum destes falantes teve alguma vez a intenção de criar uma língua, nem teve alguma vez em conta a coerência dos seus hábitos linguísticos. A "invenção" do português foi um processo totalmente cego. Uma determinada regra prevaleceu sobre as outras simplesmente porque se tornou mais popular e não porque todos os falantes tenham chegado à conclusão que essa era a regra mais racional.

10.8.04

O natural, o artificial e o espontâneo VII

Os dois principais grupos de jornais alemães voltaram à ortografia antiga e abandonaram a reforma empreendida pelo governo alemão e que entrou em vigor há 8 anos. Os defensores da ortografia antiga dizem que a língua é uma coisa natural que não deve ser controlada por burocratas. Dizem eles que a língua deve evoluir naturalmente. Os defensores da ortografia reformada acusam os jornais de (surprise! surprise!) populismo.

O natural, o artificial e o espontâneo VI

O diâmetro dos foguetes do Space Shuttle é um produto da evolução do cavalo. (via Cidadão do Mundo):

A medida padrão entre carris nos caminhos-de-ferro norte americanos tem o estranho valor de 4 pés e 8,5 polegadas (cerca de 1,44m). Porquê esta medida? Porque era a usada em Inglaterra, e os caminhos-de-ferro americanos foram construídos por expatriados ingleses.

Porque os construíam os ingleses assim? Porque os primeiros carris foram construídos pelos mesmos trabalhadores que construíram os primeiros carros eléctricos anteriores ao caminho-de-ferro, e essa era a medida que usavam.

Porque é que usavam essa medida? Porque quem construiu os primeiros carros eléctricos, usava as mesmas ferramentas com se construíam as carruagens mais antigas.
Mas porque é que essas carruagens usavam essa medida particular? Porque se usassem outra, as rodas das carruagens partir-se-iam nas antigas estradas inglesas, já que era essa a largura entre os sulcos que vincavam as estradas.

Mas quem construiu essas velhas estradas? As primeiras estradas da Europa foram construídas pelo Império Romano para as suas legiões, e foram usadas desde então. As quadrigas romanas deixaram os primeiros sulcos, que todos seguiram posteriormente, para não destruírem as rodas das suas carruagens. E uma vez que as quadrigas eram construídas pelos romanos, eram todas iguais no que diz respeito ao espaço entre as rodas.

Logo, a medida entre carris nos caminhos-de-ferro norte americanos, deriva da especificação original duma quadriga romana.

As especificações e a burocracia são eternas. Portanto da próxima vez que tiver que lidar com uma especificação, e se perguntar quem foi a besta que a inventou, pode estar mais certo do que pensa. É que as quadrigas romanas eram feitas com a largura exacta para lá caberem os traseiros de dois cavalos. Temos portanto a resposta à pergunta inicial.

E agora outro aspecto desta história.

Quando se vê um vaivém na plataforma de lançamento, há dois grandes foguetes, um de cada lado do depósito de combustível. Esses foguetes são fabricados pela Thiokol na sua fábrica no Utah. Os engenheiros que os desenharam preferiam que eles fossem mais largos, mas os foguetes tinham que ser transportados de comboio até ao local de lançamento.

Só que a linha passa por um túnel nas montanhas, e os foguetes tinham que caber nesse túnel. O túnel é ligeiramente mais largo que a linha e esta é aproximadamente da largura dos traseiros de dois cavalos.

Portanto, uma das características daquele que é considerado actualmente o mais moderno meio de transporte, foi determinada há mais de dois mil anos pela largura dos traseiros de duas bestas.

9.8.04

O natural, o artificial e o espontâneo V

Recomendação do Luís Rainha do Blog de Esquerda: A city is not a tree.

O natural, o artificial e o espontâneo IV

No século XVII os cientistas e os filósofos começaram a tentar demonstrar a existência de Deus através de argumentos científicos. Um dos argumento mais usados na época, e que ainda hoje é utilizado, é o argumento do desígnio.



Segundo o argumento do desígnio, o universo não pode ter surgido por acaso porque a natureza está perfeitamente ordenada, como os seres vivos estão tão bem adaptados ao seu meio ambiente e como os organismos vivos estão tão bem concebidos que tudo parece funcional da perfeição Tanta ordem e tanta organização só pode ter sido criada por uma mente superior que pensou em todos os detalhes e essa mente só pode ter sido a mente de Deus.

O argumento do desígnio é atraente porque os seres humanos tendem a partir do princípio de que mecanismos complexos só podem ter sido concebido por uma inteligência. Não é por acaso que a maior parte das pessoas tende a pensar que coisas como o dinheiro ou as línguas naturais são criações humanas.

E no entanto, já são poucos os que nos meios intelectuais ainda defendem que o mundo biológico só pode ter sido criado por uma entidade superior. Charles Darwin mostrou que a ordem biológica pode ter surgido por selecção natural, um mecanismo que não requer qualquer plano inteligente. Mesmo assim, e como bem mostrou o filósofo Daniel Dennett alguns biólogos, entre eles Stephen Jay Gould, que não por acaso era marxista, continuaram a tentar encontrar um mecanismo alternativo qualquer que salve de alguma forma uma réstia de concepção por uma qualquer inteligência.