9.7.04
O REGRESSO ÀS ORIGENS
Corria o longínquo ano de 1980. Leonardo Ribeiro de Almeida, Presidente da Assembleia da República eleito pela Aliança Democrática, anunciou que falaria ao País pela televisão. Fê-lo nesse mesmo dia, para comunicar que, aproveitando a ausência no estrangeiro do Chefe de Estado, o general Eanes, aprovaria alguns diplomas legais do Governo que S. Exª, seguramente por ausência de tempo, se esquecera nos últimos meses de apreciar. Ribeiro de Almeida, substituto constitucional do Presidente da República nas suas ausências e impedimentos, utilizou este mecanismo legal para dar andamento a algumas leis que o Governo de Sá Carneiro queria ver aprovadas. O Presidente, não tendo, na altura, qualquer prazo legal para se pronunciar sobre os projectos-lei do Governo, metia-os na gaveta. Era o famigerado «pocket veto», uma das mais expressivas manifestações do poder presidencial, próprio do semipresidencialismo consagrado na Constituição da República, graças ao qual Governo e Presidente viviam em conflito aberto permanente.
Todos sabemos que os constituintes de 1976 optaram por este sistema de governo porque, maioritariamente de esquerda, temiam que o poder pudesse vir parar à direita, em eleições legislativas. Por isso, elegeram a Presidência da República, tacitamente ocupada por alguém saído das Forças Armadas e, naturalmente, da ala esquerda do regime, como último reduto do seu poder. O nosso semipresidencialismo que, não obstante as revisões constitucionais e a prática dos últimos vinte anos, continua vivo, funda-se nesse receio e nessa arquitectura. De resto, a sua natureza é profundamente autocrática e muito pouco democrática, porque, nos países onde vigora, como a França, ou mesmo nos países que preferem o presidencialismo, como os EUA, o Chefe de Estado candidata-se através de partidos políticos, apresenta-se ao eleitorado com um programa politicamente comprometido. Em suma, sabe-se ao que vem e com quem vem. Por isso, é eleito em sufrágio universal directo, e são-lhe conferidos poderes políticos executivos, que nos EUA chegam a atribuir-lhe a chefia do governo. Em Portugal, não: eleito à margem dos partidos, supostamente imparcial e politicamente asséptico, ao Chefe de Estado são-lhe atribuídos poderes sem que ele previamente anuncie como está disposto a utilizá-los, em nome de que princípios e de regras. Nascido como se fosse a Rainha de Inglaterra, o Presidente da República portuguesa dispõe de fortíssimos poderes políticos.
Se Jorge Sampaio optar pela dissolução da Assembleia da República estará a recolocar o sistema de governo português no semipresidencialismo de tonalidade hard. Ao contrário do seu antecessor, que colocou essa magistratura no modelo parlamentar, Sampaio retomará a vertente eanista dos poderes constitucionais. Assumirá, o que a Constituição lhe permite, responsabilidade pela área da governação e desautorizará a Assembleia.
Não é nada que, verdadeiramente, esta e as Assembleias anteriores não mereçam. Mas será o pior remédio para um mal-estar da democracia portuguesa que só se poderá resolver quando houver seriedade política para, de uma vez por todas, se optar pelo modelo presidencial ou parlamentar de governo e, em consequência, se adaptar o sistema eleitoral à escolha feita.
Até lá, qualquer atitude política do Chefe de Estado é legal mas ilegítima. Ser eleito por sufrágio universal directo, num processo eleitoral que, pelo menos no segundo mandato, não passa de uma mera formalidade, não lhe basta para ter autoridade democrática. Este modelo de governo é uma triste herança do PREC, que todos distraidamente julgávamos enterrada. Puro erro, o nosso.