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Outras crises
A CERTIDAO DE OBITO
A dissolução do parlamento não foi novidade para os observadores mais atentos da cena política. Devemos confessar que era difícil que a solução fosse outra. Se nenhum português pôde ser insensível ao disparatado suicídio da AD, perpetrado pelos seus dirigentes, não se podia exigir ao Presidente da República que divergisse de um sentimento geral.
É certo que em termos de legitimidade democrática é duvidoso o gesto do general Eanes. Bem ou mal, as instituições encontravam-se em pleno funcionamento, não se verificou qualquer desagregação na maioria parlamentar e parecia irrecusável o seu direito de terminar o mandato de legislatura.
Em termos de pura legalidade constitucional, a substituição de um primeiro-ministro por outro apoiado pela mesma maioria não pode ser um motivo susceptível de determinar a dissolução da Assembleia da República.
Digamos, pois, que, em face dos dados puramente legalistas da situação, o acto do senhor Presidente da República não encontra uma justificação fácil. Não é lícito transformar uma crise de Governo numa crise constitucional, nem recorrer a eleições como receita para a solução de um mero problema de Governo.
Existem, porém, os dados político-partidários que caracterizaram esta crise e esses não podem de forma alguma ser esquecidos; se eles, em termos jurídico-constitucionais, não justificam a dissolução, já num plano sociopolítico autorizam a compreensão do acto presidencial.
A demissão, sem motivos públicos, de Francisco Balsemão do cargo de Primeiro-Ministro foi, sem dúvida, um acto extremamente insólito. Admite-se que tenha sido levado a essa atitude por decisões ou anuências levianas dos órgãos superiores do seu partido, nomeadamente da sua comissão directiva. Mas, quando se desencadeia um processo político de tanta gravidade, deve existir uma ponderação exaustiva das suas consequências e um planeamento correcto do processo de substituição.
Num segundo tempo, a actuação de Freitas do Amaral assumiu sobre a demissão de Balsemão uma importância excepcional. Escrevemos aqui, de imediato, que ele liquidara a Aliança Democrática. Não é impunemente que se declara publicamente ser um desaire o resultado das eleições autárquicas e que, mais tarde, se dessolidariza, com estrondo, do novo Governo AD que viria a formar-se sob a égide de Vítor Crespo, considerando-o como uma solução política frágil e pouco convincente.
Não é bom recordar o que foi a actuação do CDS no decorrer da crise e depois do afastamento de Freitas do Amaral. Não é agradável o juizo político que possa fazer-se sobre declarações, desmentidos, disponibilidades e não disponibilidades do Governo que enxamearam as negociações com o PSD. Enquanto este ia reduzindo as suas exigências, o CDS votava por escassa maioria aceitar o novo primeiro-ministro, indicava elencos que posteriormente não mantinha, e só no termo do prazo, empiricamente fixado pelo PR, os dois partidos acordavam num governo que viabilizasse o prosseguimento governativo da coligação.
O processo da crise já mereceu da nossa parte um designativo cruel. Não se tratou, e isso tornou-se evidente de mais, da formação de um Governo selectivo e adequado a mobilizar o País e o povo para a dificílima tarefa de vencer a crise da economia nacional. Num momento em que a sobrevivência de um lema e de uma coligação exigia elementos de extrema confiança capacidade e imaginação, a resposta era uma construção nitidamente forçada e frágil, salpicada de recusas e cercada de cepticismo evidente.
Este pano de fundo político e partidário não pode ser esquecido ao fazer o julgamento imparcial, e perante a opinião pública, do gesto presidencial de dissolução. Julgamos que Eanes administrou a crise com uma discrição notável, embora, quanto a nós, não seja de louvar nem a marcação de um prazo nem a teatralidade que rodeou a decisão, possivelmente já tomada há mais tempo. Os dados que possuía ontem já os possuía de longa data, quase desde o dia em que tomou conhecimento do substituto escolhido por Balsemão e da reacção em cadeia do segundo partido da coligação. Ao marcar uma data, deu uma sugestão de anuência, desde que a condição fosse cumprida. Ao retardar a sua decisão para além do momento agudo da crise, tornou-a mais difícil de aceitar e de explicar.
De qualquer forma, sejamos realistas: independentemente de poder renascer das suas próprias cinzas, a coligação de governo tinha os seus dias contados, a partir do momento em que o chefe do principal partido se demite, pela segunda vez, de primeiro-ministro, continuando à frente do partido, com o consentimento ou a anuência dos órgãos partidários; e em que o chefe ,idolatrado, do outro grande partido vira as costas e se vai embora, dizendo que a coligação não era a mesma que ele formara e que a solução encontrada não pode merecer a sua concordância.
A coligação de governo terminou por obra e graça dos dirigentes partidários que a formavam. A dissolução da Assembleia determinada pelo PR não é legalmente explicável em face dos dados formais existentes. Mas em termos políticos consistiu apenas numa simples certidão de óbito.
Francisco Sousa Tavares, 24-1-1983