19.10.04

ALMA LUSA (por acaso) Benfiquista!

Os leitores do Blasfémias que me perdoem a recorrência, porém, estas coisas do futebol acabam por revelar-se uma boa amostra e um óptimo campo de observação de certos tiques da (nossa) portugalidade (profunda)!

Este post é e não é, portanto, sobre futebol!
Não o é directamente, nem pretende, sequer e ao contrário do que o título possa apressadamente parecer indiciar (por meras razões "tácticas", diria, provocadoras) fazer uma espécie de crítica exclusiva ao clube lisboeta em questão; mas, a verdade é que o pretexto e o leit motiv, no caso particular, foi mesmo revelado pelo futebol e pelo Benfica! Assim:

Através da televisão, ontem à noite, fiquei a saber que o Benfica decidiu ir queixar-se - em rigor, não se sabe muito bem de quê, mas, enfim, queixarmo-nos, só por si, já é um acto saudável de catarse e de auto-justificação e apaziguamento - à UEFA e à FIFA.

Diz um jornal (uma página digital) que, entretanto, a UEFA e a FIFA "vão saber o que se passou"!? (Provavelmente, a esta hora, as ditas UEFA e FIFA até já dormirão mais descansadas porque, estando a morrer de ansiedade e interesse "pelo que se passou", vão, finalmente, poder sabê-lo mesmo!!!).
Por outro lado ainda, também através dos últimos noticiários da noite televisiva, pude conhecer outras intenções "internas" do Benfica: marcar uma reunião com o Sr. Ministro da Administração Interna - esse mesmo, o Ministro que também foi referido rudemente pelo Presidente do Benfica, domingo após o jogo com o Porto - com o mesmo intuito: explicar pessoalmente, segundo um responsável pelo clube da Luz, o que se passou (ou que, afinal, tudo se passou bem) em termos de segurança e, já agora, queixarem-se da arbitragem de Olegário Benquerença, em particular e da arbitragem no futebol português, em geral!!

Ao ouvir isto, recordei um episódio ainda fresco na minha memória: no Verão passado almocei, num belo dia solarengo, numa pequena terra rural do Minho interior, em casa de uns familiares. Foi um almoço ao ar livre, daqueles com comida e calor fartos e que juntou uma série de comensais mais ou menos desconhecidos uns dos outros. Já na fase da sobremesa, tendo-se formado espontaneamente grupinhos vários de convivas em função de afinidades que os bons pratos e garfadas sempre ajudam a descobrir, escutei alguém que expunha, indignado, a sua reprovação relativamente ao comportamento de um vizinho. Percebi que havia uma zanga - muito comum, lá na terra - entre o exponente e o visado, relativa à delimitação de certos terrenos agrícolas. Uma disputa de terra, de afirmação das respectivas propriedades! Uma discussão privada entre vizinhos, a pretexto de interesses conflituantes que incompatibilizavam as personagens em causa (e apenas eles, pelo que pude compreender, através dos comentários laterais que se iam fazendo).
A dado passo, a pessoa que, subindo cada vez mais o tom da respectiva voz, se queixava do tal seu vizinho aos circunstantes, explicou o seu argumento final e decisivo:
"Porque então eu disse-lhe que tinha fotografias de tudo e que ia fazer queixa dele ao Governador Civil".

Ora bem! Percebia-se que esta tinha sido a "estocada final"! A ameaça de queixa ao Governador Civil (também não percebi, em concreto, de quê ...mas isso não importava: a simples invocação de uma queixa ao Sr. Governador Civil, era, por si só, intimidatória!!!)... Ainda perguntei, a medo e um pouco atónito com aquele epílogo, o porquê do Governador-Civil?!
Porém, isso era um pormenor absolutamente despiciendo. Era o Governador Civil, como poderia ter sido o Comamdante da GNR local, ou talvez um qualquer Vereador, no limite.... mesmo o Chefe dos Correios também serviria!
O que interessava era que havia uma queixa a alguém que manda, que tem poder ou que participa no poder de uma coisa que, para o nosso contador da história, lhe parecia naturalmente superior, reverencialmente superior e, sobretudo, paternalmente regulador dos seus problemas de vizinhança: essa coisa, no caso, era o Estado; melhor, a imagem (subjectiva, dele) do Estado e daqueles que ele achava serem os seus agentes! Curiosamente, nunca pensou - nem por mera hipótese académica - recorrer à via judicial, consultar um advogado, etc., etc....

Sinceramente, este rol de reclamações e de reuniões pretendidas pelo Benfica para se queixar (repito, não se sabe bem de quê!) ao Ministro que, na véspera, tinha tratado rudemente, ou a entidades que projectam uma imagem de superioridade e de poder acima de todos nós, fez-me lembrar a história que ouvi naquele almoço!

Uma história muito portuguesa; mais, muito do "Portugal profundo", uma história de reacção emotivo-popular, absolutamente descabelada, é certo, mas muito presente entre nós: a queixa alguém que mitificamos como superior, como nosso superior, patrão, Pai que nos vai resolver os nossos problemazinhos ou, no mínimo, nos vai reconfortar e apaziguar o nosso estado de espírito!

Uma história - como o é, no fundo, a reacção anunciada pelo Benfica - de busca e de aceitação de uma subalternidade perante alguém que, mesmo que não exista, ou não tenha competências, ou não possa fazer nada...ou até se esteja, porventura, a ralar para aquilo que na nossa pequenez, achamos que tem alguma importância, possa receber a NOSSA QUEIXA!

A história de uma mentalidade pequena e de não resolução nos lugares certos e responsáveis das questões em que nos envolvemos (no caso do Benfica, se há alguma razão para uma qualquer queixa, concerteza que serão os órgãos próprios da "corporação" nacional de que faz parte que poderão fazer alguma coisa - por ex., a Liga que, de resto, tem a composição que tem e o Secretário que tem, por causa do próprio Benfica!).

Uma história de mitificação do Estado, de dependência instintiva do Estado, de desresponsabilização a contar, para tudo e para o que nos vier à cabeça, com a intervenção do "papá" Estado.
Uma mentalidade serôdia, ainda muito rural e provinciana (sim, materialmente provinciana), lembrando-nos o Portugal bucólico dos romances de Júlio Dinis, a mesma mentalidade subsidio-dependente, de "esperteza saloia", de incompetência que se tenta ultrapassar com a "dádiva divina", perdão, do Estado omnipresente!!!

Este ainda é um traço muito significativo da contemporânea portugalidade, seja no Minho, no Porto, em Lisboa (como se vê) ou em qualquer lado e com quaisquer pessoas e instituições.....