1.10.04

Carta para Londres II

Resposta ao Bruno:

Uma brincadeira com água no bico


O problema científico da origem do dinheiro, das línguas e das instituições tem piada? Tem montes de piada. É uma questão fascinante.

São a mesma coisa? Pode haver poder sem regras, ou regras sem poder? Diria que com o colapso do Estado como geralmente o entendemos se cai na anarquia e na anomia. Total ausência de poder e total ausência normas não sei se existe.



Quer isso dizer que o estado é a única fonte de ordem? Sem direcção central não há ordem? Que dizer então das instituições sociais que já existiam antes do estado moderno aparecer e que sobreviveram a vários estados? Por exemplo, as línguas naturais, o dinheiro, o comércio, a common law. O ouro já é usado como dinheiro há milhares de anos, muito antes de o primeiro estado ter cunhado moeda.

E como explicar as instituições internacionais que subsistem apesar de não existir nenhum estado mundial? Como explicar o comércio internacional, as ligações científicas entre cientistas de países diferentes, os laços estabelecidos entre as comunidades judaicas através do mundo? Tudo isto são instituições que transcendem o estado e que, se o estado fosse a única fonte de ordem, só poderiam existir sob a tutela de um estado mundial.

Exactamente o contrário! O mercado pressupõe imensas regras, um árbitro forte. Aqui há uma confusão de base. A economia de mercado não é algo de natural.


Como explicar o comércio no mundo antigo? Por exemplo, o comércio entre cidades estado dominadas por poderes diferentes. Como explicar o aparecimento do ouro como moeda há milhares de anos? Como explicar os indícios de comércio na idade da pedra?

O estado liberal é emancipador no sentido em que criou uma sociedade de cidadãos com iguais direitos civis e políticos, e a economia de mercado. O que para não ser uma ficção implica alguns serviços públicos mínimos e não simples arbitragem (vide Locke lido por José Barros).


Não terá sido ao contrário? Não foram os contrapoderes existentes na sociedade civil, entre eles burgueses e proprietários que estavam perfeitamente integrados no mercado, que criaram o estado liberal? O estado liberal não se pode ter formado a partir do vácuo. Os conflitos de poder entre os senhores feudais e o estado central e entre os estados e a igreja e o papel subversivo do comércio entre cidades devem ter tido alguma coisa a ver com a emergência do estado liberal.

Com os bens de quem? Pergunta bem. Primeiro da Igreja e de alguma Nobreza: as terríveis expropriações do século XIX, o terrível intervencionismo estatal no nascimento da economia de mercado!


E onde é que fica o direito de propriedade? Os liberais de esquerda não são a favor dos direitos de propriedade? Será que este método pode ser utilizado outra vez? Os liberais de esquerda são a favor de nacionalizações?

Hoje, essencialmente com os impostos... Ou acha que o Estado não deve cobrar impostos?


Hoje em dia, cada cidadão europeu paga em média 50% do seu rendimento em impostos. Uns devem pagar muito mais, e outros devem pagar muito menos. Agora explique-me, porque é que o estado nos libertou do feudalismo? E como é que um liberal de esquerda justifica as transferências através dos impostos?

O indivíduo de que você fala é uma criação do Estado liberal, só nele pode subsistir (vide Somália)!


Eu pensava que o estado devia ser uma emanação da vontade individual. Os liberais de esquerda defendem que o indivíduo deve a sua liberdade ao estado? E, sendo assim, deve-lhe prestar vassalagem?

Eu quero que o Estado liberal continue a proteger o indivíduo contra grandes concentrações de poder e os abusos que produzem.


Eu também. E qual é a maior concentração de poder de todas? Pois ...

Existem dois tipos de poder. O poder conseguido por quem produz bens e serviços que os consumidores valorizam. Estes chamam-se Microsoft, McDonalds, IBM , Wal Mart etc. E o poder conseguido através do monopólio da força. Estes chamam-se Portugal, França, EUA ... As grandes empresas só têm poder se agradarem ao consumidor. Os estados têm poder porque têm poder. Não precisam de satisfazer todos os seus clientes.

As empresas não são uma violação do seu individualismo total? Viva o empresário em nome individual?


As empresas resultam da associação voluntária de indivíduos. Também não tenho nada contra as comunas formadas voluntariamente.

Há alguma coisa que a sociedade faça melhor do que o Estado? Não percebo o sentido da pergunta. O que é para si a sociedade? O Estado é exterior à sociedade?


Quando falo da sociedade, falo obviamente da sociedade civil, na qual o poder e a influência de cada um depende da avaliação de todos os outros e não do uso da força. O estado é a única instituição cujo poder depende essencialmente do monopólio da força.


E já agora, para si, as empresas privadas são necessariamente eficientes e o Estado necessariamente ineficiente?


1. A sociedade civil não se esgota nas empresas. Ainda existem associações cívicas, associações desportivas, associações mutualistas, sindicatos, cooperativas, fundações e em alguns sítios até existem comunas.

2. Há boas razões para pensarmos que as empresas são, na grande maioria das situações, mais eficientes que o estado. Isso tem a ver essencialmente com os incentivos e com a economia da informação.

3. Uma má empresa só prejudica os seus proprietários. Um mau estado prejudica toda a gente.

O Estado deve estimular a economia? Deve ser jogador, árbitro ou jogador-árbitro? Não é uma questão de escolha! O Estado é sempre jogador e árbitro. Tem sempre impacto económico.


Uma coisa é o estado ter impacto económico porque, como árbitro, tem que consumidor recursos. Outra coisa é o estado desempenhar deliberadamente o papel de jogador. Quando o estado é ao mesmo tempo jogador e árbitro, o resultado é a batota.
Dê-me um exemplo de um Estado puramente árbitro!

Não há. Mas isso só prova que o poder do estado é a maior ameaça à liberdade nas sociedades modernas. A instituição que devia desempenhar o papel de árbitro não é neutra.

A economia não é uma ciência, pelo menos não uma ciência exacta, e certamente não no sentido de permitir ditar lições válidas para todo o sempre.


1. Essa é uma lição válida para todo o sempre, ou é apenas uma conjectura?

2. A Lei da Oferta e da Procura é uma lei transitória?

3. Essa incerteza toda em relação à economia não é um argumento contra os intervencionismos?

O que Estado pode e deve fazer muda com o contexto e deve ser objecto de debate, informado economicamente, mas não determinado pela escola por acaso dominante na altura.


Alguns economistas defendem que o estado prejudica sempre a economia porque deturpa os mecanismos de mercado levando os agentes a produzir bens e serviços que não satisfazem as preferências dos consumidores. E se eles têm razão?

a propriedade livre dos arbítrios do poder é essencial para a liberdade política, mas que precisamente por isso também se preocupam que todos tenham condições mínimas de subsistência e de entrada no mercado.


Para que todos tenham condições mínimas de subsistência e de entrada no mercado foi criado um estado que põe e dispõe da propriedade de todos para criar uma corte de dependentes. Resultado: nas sociedades modernas existem dois tipos de pessoas. As que têm propriedade mas não têm liberdade porque o estado tem o poder total sobre a propriedade de todos e as que não têm propriedade e também não têm liberdade porque dependem do estado.

Liberalismo = social-democracia? Hoje em dia, é por isso que se fala de regimes demo-liberais, o legado liberal está presente em maior ou menor grau em todos os grupos políticos (até no PCP!).


Bem, se um liberal é um fulano que tem uma réstia de liberalismo, então somos todos liberais. Mas a pergunta não era bem essa. O que eu pretendia saber era se quem passa o seu tempo a defender e a justificar limitações à liberdade, a louvar o papel do estado e a defender a submissão dos interesses de uns indivíduos aos interesses de outros pode ser considerado um liberal.