20.10.04

Exercícios exegéticos

O que o Ministro Morais Sarmento disse na famigerada conferência foi isto:
«Deve haver uma definição por parte do poder político acerca do modelo de programação do operador do serviço público [de televisão]».
O que é que significa "poder político" e "definir o modelo de programação"?
Almerindo Marques, presidente do Conselho de Administração, foi ao telejornal da RTP dizer que essa definição "já foi feita" na "lei da televisão" e no "contrato de concessão" (assinado, em representação do Estado, pelo mesmo Morais Sarmento, então Ministro de José Barroso). Morais Sarmento, no «esclarecimento» que veio entretanto apresentar, afirmou que «compete ao Governo a iniciativa, através da Lei de Televisão, de definir o conceito e obrigações do serviço público».
Ora, a lei anterior, assegurava a independência da informação nos seguintes termos: A RTP, enquanto concessionária, obriga-se a «Assegurar o pluralismo, o rigor e a objectividade da informação, bem como a sua independência perante o Governo, a Administração Pública e os demais poderes públicos; ».
A lei actual (aprovada pela actual maioria parlamentar e publicada há pouco mais de um ano) é mais lacónica, embora continue a falar na independência da informação: «O serviço público de televisão observa os princípios da universalidade e da coesão nacional, da excelência da programação e do rigor, objectividade e independência da informação, bem como do seu funcionamento e estrutura.»
A par desta disposição, as regras gerais aplicáveis a todos os canais generalistas que tenham informação obrigam à existência de conselho de redacção e de um director de informação. No caso da RTP, este Director de Informação é responsável de forma directa e exclusiva pela selecção e pelo conteúdo dessa mesma informação. É o que se pode ler no artigo 4.º dos Estatutos da RTP, S.A., (artigo estranhamente integrado no pacto social de de uma sociedade anónima, aprovados ainda mais estranhamente através de Lei da Assembleia da República...): «A responsabilidade pela selecção e o conteúdo da programação e informação da RTP, S. A., pertence, directa e exclusivamente, aos directores que chefiem aquelas áreas».

Morais Sarmento tem por isso razão quando diz que «deve haver limites à independência». Na verdade, não deve haver, há já de facto limites legais (impostos pelo poder político) a essa independência... Só que esses limites não podem ser discricionários nem impostos por acto administrativo.

Ora, na actual conjuntura, vir um ministro dizer que «deve haver limites à independência» é (automatica e legitimamente) lido como «o governo vai impor (novos) limites a essa independência», o que de facto seria uma afirmação de uma estupidez atroz.
É que entre caber ao Governo apresentar no Parlamento uma proposta de lei da televisão (a versão rectificada das declarações do ministro) e ser o Governo a definir o modelo de programação ( a versão original das mesmas declarações) há uma diferença, apesar da maioria parlamentar, muito grande.
Deve ser para evitar declarações destas que o governo quer criar a central de comunicação...