23.10.04

SRU's (novamente) e "concursos públicos"

Tenho acompanhado as vicissitudes recentes e a problemática da concreta Sociedade de Reabilitação Urbana do Porto (Porto Vivo), sobretudo, através do debate mantido no "A Baixa do Porto".

Já aqui (no Blasfémias) tivemos oportunidade de suscitar um princípio de debate - sim, apenas princípio, porque acho que, em matéria de SRU's, a procissão ainda nem sequer ao adro chegou! - através de alguns posts, nos quais, independentemente do caso concreto da projectada Porto Vivo e das suas potencialidades e previsíveis virtualidades (virtualidades essas devidas, sobretudo, a algumas pessoas associadas ao projecto, como o próprio presidente indigitado, Arlindo Cunha), independentemente de tais potencialidades e virtualidades - dizia - foram manifestadas algumas reservas quanto ao "tipo normativo" das ditas Sociedades de Reabilitação Urbana (SRU's) e, em concreto, sobre alguns pontos muito problemáticos do Decreto-Lei nº 104/2004, de 7 de Maio. Recorde-se, é este D.L. nº 104/2004 que institui as referidas sociedades (SRU's). No fundo, não sendo um particular estudioso ou especialista das intrincadas matérias do Direito administrativo, tive, contudo, alguma curiosidade em começar (apenas começar) a ler o diploma em causa, dadas as conversas e as críticas que, "á boca pequena" e entre ilustres juspublicistas do nosso meio, se vão podendo escutar!

Ora, padecendo ultimamente de alguma falta de disponibilidade e aversão (falta de paciência) para acompanhar pela imprensa a novela de política local em torno da aprovação (ou reprovação) dos estatutos da SRU em causa, o facto é que vou intuindo e deduzindo algumas questões em discussão, através da leitura de alguns blogues e, em particular, através dos textos de TAF, Cristina Santos, F. Rocha Antunes, Carlos Ribeiro, Rio Fernandes e outros que passam habitualmente pela "A Baixa ".

Chamou-me a atenção um texto de Rocha Antunes ("A Prova que faltava", de 21.10.2004), no qual se dá conta de uma (aparentemente) desconcertante exigência do PS do Porto, apresentada como uma das condições de viabilidade dos estatutos da Porto Vivo, na Assembleia Municipal: a necessidade de concurso público na selecção dos investidores privados interessados na reabilitação e/ou, mais rigorosamente, na contratualização, com a referida SRU, da respectiva participação nas obras de reabilitação, a definir.

Ora, tal exigência parecia, de facto e como Rocha Antunes referia, algo de desnecessário (portanto, um mero expediente de pequena táctica política), sobretudo, face ao artigo 31º do DL 104/2004.
Parecia e talvez seja! - não me preocupei, sequer, em procurar as notícias publicadas sobre o teor concreto da alegada exigência do PS.

Em contrapartida, tentei perceber a lógica da contratação pública (e da consagração de "concursos públicos") decorrente do diploma - sabendo, de antemão, que a partir de certos limiares, tal lógica será sempre salvaguardada pelas exigencias do Direito Comunitário(concurso público europeu).


Na realidade, deparei, à primeira vista, com um "buraco" que permite intuir uma minhoca. Passo a expor:

1)Uma vez definida uma concreta "unidade de intervenção" para reabilitação (quarteirão, pátio, rua ou mesmo, em casos de "particular interesse público"?!, edifícios - nº 2, artigo 14º, do DL 104/2004), compete à SRU, conforme o artigo 15º, do DL 104/2004, elaborar o "documento estratégico" (com ou sem plano de pormenor - nos termos da decisão/faculdade prevista no artigo 12º), que norteará/regulará tal intervenção.

2)Nos termos do nº 5, do referido artigo 15º do DL em consideração, a totalidade dos proprietários em causa (abrangidos ou cujos imóveis estejam integrados na referida "unidade de intervenção"), poderá propor à SRU um "documento estratégico", directamente ou através de um promotor. Atente-se no pormenor: esta possibilidade de proposta, refere-se à totalidade dos proprietários. De todo o modo, a aceitação ou não de tal proposta, no que respeita á elaboração de tal documento, é uma competência exclusiva (e julgo que, nos termos gerais, corresponde a um poder discricionário) da SRU.

3) Ora, independentemente da questão da elaboração participada - ou não - do mencionado "documento estratégico", importa referir que os proprietários da dita "unidade de intervenção" poderão ainda, nos termos do artigo 20º deste D.L. nº 104/2004, acordar com a SRU sobre a reabilitação, em concreto, das respectivas fracções de sua propriedade (ou das partes comuns dos edifícios que integram as suas fracções, através de deliberação da assembleia de condomínios). Poderão, com efeito,
1) celebrar, eles próprios com a SRU, um contrato através do qual se comprometem a realizar as obras estipuladas pela SRU e descritas no "documento estratégico", ou, por outro lado,
2)poderão celebrar um contrato com empresa ou empresas privadas indicadas como parceiros da SRU, nos termos do tal artigo 31º (empreiteiros e/ou empresas de construção civil, promotores, etc., etc.), para a execução das obras de reabilitação.
Ambas as hipóteses estão previstas nos termos das alíneas a) e b), do nº 2, do artigo 20º ("Intervenção forçada"), do DL 104/2004.

4) É, de facto, referindo-se à escolha destes parceiros privados das SRU's (sociedades que, previsivelmente, não disporão de meios próprios para empreenderem a reabilitação, sob o ponto de vista da respectiva execução) que o nº 2, do artigo 31º do diploma legal em causa, se refere ao "concurso público" (naturalmente!).

5) Por seu turno - se bem que este aspecto já seja meramente acessório e até incidental - o nº 4, dessa mesma norma, alude novamente ao "concurso público", mas agora respeitante à elaboração do já atrás mencionado "documento estratégico" (ainda assim, hipótese meramente facultativa, prevista nos termos do nº 4, do artigo 15º e remetendo-nos, também, indirectamente, para o artigo 12º, ambos do mesmo DL nº 104/2004).

6) Porém - e aqui julgo que reside o tal "buraco" - nos termos do artigo 32º, compete à SRU promover directamente a reabilitação urbana nos casos em que:

a) opte por não celebrar contratos de reabilitação urbana com os tais parceiros privados a que alude o artigo 31º, atrás mencionado (recorde-se, trata-se da hipótese 2 supra e assumida, nos termos legais - artigo 31º - como uma mera e simples faculdade das SRU's), ou então,
b) nos casos em que o tal "concurso público" a que se refere o artigo 31º, atrás mencionado, para a escolha do referido parceiro privado com quem se celebraria o dito contrato de "reabilitação urbana", fique deserto.

7) Ora, e para estes casos de intervenção directa das SRU's, o mesmo artigo 32º (que prevê tais casos) estipula, no seu nº 2:

"Atendendo á urgência das intervenções, as SRU ficam isentas da aplicação do disposto no regime das empreitadas de obras públicas relativamente às empreitadas de valor inferior ao estabelecido para efeitos de aplicação da Directiva da União Europeia relativa à coordenação dos processos de adjudicação de obras públicas " (o sublinhado é nosso).

Ou seja e em conclusão: supondo-se que alguns, ou muitos, dos casos de intervenção - talvez mesmo a maioria? - não atinja, previsivelmente, tal limiar fixada pelo Directiva, e sendo mais do que previsível a "intervenção forçada", nos termos do artigo 20º do DL 104/2004, numa larga maioria de situações, então, aparecem, assim, reunidas, as condições para que, na prática, com este nº 2, do artigo 32º, se "deixe sair pela janela", aquilo que, aparentemente, se diz que se quer que "entre pela porta", no artigo 31º - a saber, o "concurso público" (pressuposto no regime das empreitadas de obras públicas) na escolha dos parceiros materiais e efectivos a quem adjudicar os trabalhos/obras de reabilitação.

(P.S. - Link para o DL 104/2004, no "A Baixa do Porto")