25.4.05

Leituras: Vencer a Crise

"Portugal tem de se habituar a viver com aquilo que tem."
Mário Soares

"Vencer a crise. Preparar o Futuro. Um ano de Governo Constitucional" é uma obra publicada em 1977 pela Secretaria de Estado da Comunicação Social, Lisboa, sendo a elaboração da publicação da responsabilidade do gabinete do Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro para os assuntos políticos (Manuel Alegre), e a coordenação de Nuno Vasco.

Tratando-se de "uma obra colectiva" (pág.7), e dotada de interessante acervo fotográfico, a nossa atenção irá centrar-se nos "Textos políticos do Primeiro-Ministro" (pág. 41-75), Mário Soares, dos quais serão extraídas algumas citações.

Trata-se de um documento de assinalável interesse histórico, uma vez que permite contactar com o pensamento político do então Primeiro-Ministro, o primeiro a estar um funções após um procedimento democrático, na sequência da Revolução de 1974.

Para M. Soares, defendendo que "Somos, Portugueses, um grande povo. Temos orgulho de ser um grande povo" (pág.44), deveria reconhecer-se que "o Governo Constitucional assumiu o poder num momento particularmente difícil" (pág. 48), uma vez que "Não nego que exista uma crise em Portugal, crise que, no seu aspecto fundamental - o aspecto económico - poderá sintetizar-se em três tópicos: défice da balança de pagamentos: inflação, isto é aumento do custo de vida e desemprego" (pág. 48).

As matérias abordadas nestes textos poderão ser divididas nas seguintes alíneas:

1. Pontos de conteúdo Democrático e/ou Liberal.

Salientam-se, neste plano de pensamento:
1.1 "Nós não queremos, em Portugal, constituir ou criar uma sociedade de burocratas, uma sociedade de homens que vivem à mesa do Orçamento e à sombra do Estado. Queremos, em Portugal, criar uma sociedade de homens livres que tenham a capacidade de iniciativa própria, capazes de contribuir para a riqueza nacional" (pág.46).
1.2 "Penso que a democracia - e tudo o que ela implica - é a grande revolução do nosso tempo. Democracia e socialismo democrático" (pág. 47).
1.3 "A nossa política é democrática e a democracia implica, tolerância, paciência, diálogo e desejo de discussão. Recusamo-nos, portanto a fazer esse tipo de discriminações que leva a pôr no gueto outras formações políticas" (pág. 47).
1.4 "queremos construir neste país, antes de mais uma sociedade livre, democrática e participada, com igualdade de oportunidades para todos, baseada no trabalho, no respeito pela lei e na justiça" (pág. 57).

Poderá acrescentar-se, num plano conexo: "Portugal orgulha-se de uma vocação universalista. Não julgamos que o facto de pertencermos à Europa prejudique essa vocação" (pág. 60).

2. Pontos de conteúdo Socialista.

Numerosos pontos do texto focam o ponto de vista socialista (no sentido que a palavra tinha na época), com a frequente defesa da "justiça social". Salientam-se alguns pontos mais controversos:
2.1 "o essencial é manter as nacionalizações. Mas para isso exige-se que o sector público funcione" (pág. 53); "não voltaremos atrás na política de nacionalizações" (pág. 61).
2.2 "saberemos avançar com prudência em direcção ao socialismo - se for essa a vontade do povo português expressa em eleições livres" (pág. 67).
2.3 "A terra, evidentemente, tem de pertencer a quem a trabalha. ...a solução... passa pela via do cooperativismo a sério" (pág. 72).

3. Pontos de conteúdo Ético, Económico e Cívico.

Encontram-se no texto mensagens claras neste âmbito, de que se salientam:
3.1 "as pessoas em certo momento deixaram de pensar que era necessário trabalhar duramente" (pág. 51).
3.2 "há efectivamente uma "décalage" entre aquilo que o país produz e aquilo que o país consome" (pág. 52).
3.3 "O actual Governo é pois, ...a garantia do diálogo" (pág. 54).
3.4 "devemos, já, tomar medidas, e medidas drásticas, para reduzir os défices" (pág. 62).
3.5 "Nós temos de nos habituar a viver com aquilo que temos. Esta é a verdade fundamental. Portugal tem de se habituar a viver com aquilo que tem" (pág. 62).
3.6 "O Estado garante o direito ao trabalho ... mas não o direito à preguiça, ao abandono, ao desrespeito ou ao abuso" (pág. 66).
3.7 "O homem é sempre o capital mais precioso e é graças ao seu trabalho esforçado que se podem vencer as dificuldades e aumentar a riqueza das nações" (pág. 70).
3.8 "Todas as dificuldades porque passamos de momento...são vencíveis a médio prazo, com trabalho, método, disciplina e persistência" (pág. 75).

Como comentário, poderemos dizer que do pensamento do então Primeiro-Ministro de Portugal, os conceitos Democráticos e Liberais se tornaram consensuais em Portugal, nos anos que se seguiram a 1977. O mesmo, contudo, não sucedeu com alguns conceitos de inclinação socialista, que poderemos, em alguma medida, atribuir à atmosfera política da época.

É, contudo, no plano Ético que encontramos o acervo mais interessante, com um conjunto de ideias claras e merecedoras de reflexão, uma vez que algumas das mesmas são, na verdade, dotadas de valor intemporal.

Nota final: 31 anos após a revolução, será porventura oportuno agradecer a Mário Soares a sua contribuição decisiva para impedir uma sucessão de totalitarismos, uma vez que, para um liberal, não há liberalismo sem liberdade.

José Pedro Lopes Nunes