24.12.05

O SUAVE NATAL DE QUE ME LEMBRO

(reposição desta posta de há 1 ano)
O meu avô materno ainda era vivo e a família aproveitava o Natal para se juntar à sua volta. A viagem até ao casarão setecentista, embora distasse apenas 130 km do Porto, demorava horas e exigia preparação. Esta denotava-se nos protestos de meu pai que antecipavam a flagelação do caminho. As estradas eram de traço novecentista com um piso tantas vezes remendado quantas as lombas e os solavancos com que éramos brindados. Depois de Vila Pouca a coisa piorava. Era uma quase viagem no tempo - do fontismo transitávamos para as obras do Marquês e daí, directamente, para a Idade Média. As últimas centenas de metros até à porta da casa eram épicas. O meu avô assegurava que se tratava de um pedaço de uma velha estrada romana mas o meu pai garantia, ruidosamente, que os romanos eram um povo civilizado que nunca fariam um carreiro tão mal amanhado.
Lá chegados o meu sonho começava. Correrias com os primos, expedições aos recantos da quinta, excitantes demandas pelos mistérios imaginados da casa, o espanto respeitoso e sempre renovado perante o capacete e a máscara de gás que o avô tinha trazido da Grande Guerra e as histórias que ele contava, sempre sorrindo.
Depois da ceia íamos para uma cozinha toda em pedra que evocava uma capela abandonada onde, acolhedoramente, uma lareira enorme servia de centro. Conversávamos e cantávamos como só se fazia naquela noite.
Então, a tia de quem eu mais gostava lia "O Suave Milagre" aquele conto de Natal tão doce que só poderia ter sido escrito por quem sabia que o mundo não era assim:
"...E, então, o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar de uma asa, pediu a mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:- Oh, filho! E como queres que eu te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do Rabi da Galiléia? Obede é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areias e colinas, desde Corazim até ao país de Moabe. Séptimo é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hébron até ao mar! Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora connosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:- Oh! Mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!E a mãe, em soluços:- Oh! Meu filho, como posso te deixar? Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce Rabi. Oh! Filho! Talvez, Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O céu o trouxe, o céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes. Dentre os negros trapos, erguendo as pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:- Mãe, eu queria ver Jesus...E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:- Aqui estou...".

Depois o meu avô morreu e os Natais nunca mais foram iguais. E eu cresci e percebi que ainda que as coisas do Natal não sejam verdade há uma altura da vida em que temos de o viver como se o fossem. Para, pelo menos, ficar a quente lembrança daquilo que julgávamos que o Natal seria.